
Henfil,
um cronista da redemocratização
No contexto da luta da sociedade civil contra a opressão de um regime ditatorial, muitas foram as formas de resistência dos brasileiros nos anos 70 e 80. A luta armada, a palavra escrita, a mobilização sindical, por exemplo. Mas havia outra forma sutil de crítica social, o humor. Um dos maiores expoentes desta vertente foi Henrique de Souza Filho, o Henfil.
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Nascido em Minas Gerais, mais precisamente, em Ribeirão das Neves, no dia 5 de fevereiro, de 1944, Henrique de Souza Filho, o Henfil, completaria 80 anos.
Desde criança já demonstrava talento para a ilustração, mas foi só com aproximados 20 anos, em 1964, que estreou profissionalmente em um “cartoon” (daí o termo cartunista) na revista Alterosa, de Belo Horizonte.
Coincidentemente sua carreira começa quando os militares tomam o poder, em 1964 e se desenvolve durante o período da ditadura.
Em 1965 passou a colaborar com o jornal Diário de Minas, produzindo caricaturas políticas. Em 1967, criou charges esportivas para o Jornal dos Sports, do Rio de Janeiro. Também teve seu trabalho publicado nas revistas Realidade, Visão, Placar e O Cruzeiro. A partir de 1969, passou a colaborar com o Jornal do Brasil.
Todos estes, grandes jornais ou revistas de circulação nacional, veículos, digamos “generalistas” e que se mantinham mais ou menos isentos em relação ao que ocorria no país.
Em 1969, Henfil se engaja por um breve período como ilustrador do Pasquim, um jornal satírico carioca que, não obstante o tom editorial irônico, ou mesmo por causa disso, era um dos mais atuantes críticos dos militares.
O período no Pasquim ajuda o cartunista a sedimentar o projeto da revista Fradim, uma revista em quadrinhos editada entre 1970 e 1980, onde o artista pode criar seus mais conhecidos personagens.
O artista teve praticamente toda sua produção feita durante o regime militar e, por isso, a maior parte de suas obras reflete a luta pela democratização do país, pela anistia aos presos políticos e pelas eleições Diretas Já.
Foi nesta época que o artista se mudou para São Paulo e seu apartamento, na rua Itacolomi, 419, oitavo andar, ficou conhecido como “bunker”, por abrigar outros cartunistas como Angeli, Glauco, Nilson e Laerte Coutinho.
De acordo com Laerte, que relembrou seus momentos com o falecido cartunista, trabalhar com Henfil era, ao mesmo tempo, “muito legal e exasperante”.
“A gente sentava para produzir coletivamente, mas o Henfil tinha uma velocidade e uma profusão na criação que a gente não chegava aos pés. A gente ficava pensando ideias, e ele já tinha desenhado uma dúzia de cartuns. Ele era assim, a cabeça dele era uma usina muito ativa”, contou Laerte em uma entrevista para a Rádio Brasil de Fato.
A cartunista conta ainda que Henfil estava decepcionado e pessimista com a política brasileira no final de sua vida, mas opina que ele certamente continuaria militando pela democracia e denunciando o golpe de 2016. Ela ressalta que o maior legado de Henfil é a defesa dos direitos do povo por meio do humor.
O cemitério dos Mortos-Vivos e o “enterro” de Elis Regina

Uma série de cartuns de Henfil que ficou bastante conhecida foi “O Cemitério dos Mortos-Vivos”, em que “enterrava” personalidades públicas que, na opinião do cartunista, eram favoráveis à ditadura.
Um desses “enterros”, foi motivo de especial polêmica entre o cartunista e a cantora Elis Regina.
Henfil “enterrou” Elis após ela cantar o Hino Nacional num show nas Olimpíadas do Exército. O cartunista tratou de enterrá-la imediatamente no cemitério do Cabôco Mamadô, personagem seu que mandava para a cova apenas pessoas vivas, acusadas de colaborar com o regime.
A mágoa que Elis trazia do episódio (ela declarou posteriormente que sua família estava sendo ameaçada e portanto não tinha escolha, senão se apresentar no Exército) perdurou por anos.
A redenção da cantora e a reaproximação entre os dois só viria quando, em 1978, Elis interpretou e posteriormente gravou a canção “O Bêbado e a Equilibrista”.
A canção começou a ser composta no período entre as festas de Natal de 1977 e Ano Novo. João Bosco queria homenagear Charles Chaplin, morto em 25 de dezembro daquele ano. Seus primeiros versos citam metaforicamente a queda do viaduto Engenheiro Freyssinet (Cento e doze metros de concreto do viaduto desmoronam sobre a Avenida Paulo de Frontin. A queda matou 48 pessoas e feriu dezenas): ”Caia a tarde feito um viaduto, e um bêbado trajando luto, me lembrou Carlitos”.
A letra fazia referências diretas a eventos e personalidades ligadas de alguma forma à Ditadura Militar e ao processo de anistia que estava sendo articulado.
Nos versos “Choram Marias e Clarices”, Bosco cita Maria, filha de Manuel Fiel Filho, e Clarice Herzog, esposa de Vladimir Herzog, pois ambos morreram nos porões do DOI-CODI.
Mas foi os versos “Meu Brasil… Que sonha com a volta do irmão do Henfil”, interpretados magistralmente por Elis, que selou a paz entre ela, Henfil e a opinião pública.
Não era fácil interpretar uma música tão diretamente afrontosa ao regime, e Elis a tornou o “Hino da Anistia”.
Aldir Blanc declarou considerar a canção um registro da união e amizade entre ele, João Bosco, Henfil e Elis Regina.
Henfil viria a declarar em entrevista, posteriormente, que de todas as personalidades que ele “enterrara” no Cemitério dos Mortos Vivos, apenas Clarice Lispector e Elis Regina tinham sido um equívoco seu.
O irmão do Henfil

Herbert de Souza. O Betinho, era o irmão do Henfil, citado nos versos da canção. Sociólogo, Herbert logo se engajou nas lutas populares e apoiava as chamadas “reformas de base” do presidente deposto João Goulart.
Perseguido pela ditadura foi obrigado a se exilar, primeiro no Chile, depois no Canadá e México. Voltou ao Brasil quando a Anistia foi aprovada, no ano de 1979.
De volta ao país dedicou sua vida aos estudos e proposições de políticas para solucionar os problemas sociais das camadas menos favorecidas.
No início dos anos 90, liderou o movimento denominado Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, que mobilizou a sociedade para o problema da fome que assolava nada menos do que 40% da população brasileira desde os anos 80.
Em seus primeiros anos, o movimento liderado por Betinho havia conseguido arrecadar e distribuir 50 mil toneladas de alimentos.
Em 2012, a história de Betinho e sua luta pelas melhorias das condições da população foram reconhecidas pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) como parte importante da memória mundial e o arquivo Herbert de Souza, do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas (FGV), foi indicado para o Registro Nacional do Programa Memória do Mundo.
O outro irmão de Henfil

Irmão mais novo de Betinho e Henfil “Chico” Mário formou-se em economia e fez pós-graduação em análise de Sistemas, mas acabou destacando-se por sua carreira na música, como compositor e violonista.
Em 1978, se mudou de Minas para o Rio de Janeiro e, um ano depois, gravou seu primeiro disco, após ser elogiado pelo poeta Carlos Drummond de Andrade. Em 1980, através de um financiamento coletivo, gravou o álbum “Revolta dos Palhaços”, que teve parcerias com poetas como Aldir Blanc e Gianfrancesco Guarnieri, e convidados especiais como Ivan Lins, MPB-4, Lucinha Lins, Boca Livre, Danilo Caymmi, entre outros.
Chico seguiu carreira como músico e produtor, até sua morte no final dos anos 80.
A hemofilia e a Aids na vida dos Irmãos Sousa
Henfil, Betinho e Chico Mário, tinham algo a mais em comum, do que a militância pelas causas sociais em suas áreas de atuação. Os três herdaram de sua mãe a condição genética que impede a coagulação sanguínea, condição conhecida como Hemofilia.
Por causa desta condição de saúde os três irmãos precisavam passar frequentemente por transfusões de sangue.
Vale lembrar que corriam os anos 80, as condições de controle sobre as bolsas de sangue não eram rigorosas como hoje e uma nova doença ainda meio desconhecida, assolava o mundo, a AIDS.
Infelizmente os três irmãos foram vítimas do mesmo descaso da saúde pública. Em uma de suas transfusões foram inoculados com o vírus da AIDS, doença cujos tratamentos ainda eram muito difíceis nos anos 80.
Henfil e Chico morreram no ano de 1988. Betinho, o mais velho dos três, foi o que conseguiu a maior sobrevida ao vírus, faleceu em 1997.
Alguns ersonagens memoráveis de Henfil

Fradim
Os fradins Baixinho e Cumprido (com “u” mesmo) eram uma forma de Henfil ironizar a educação religiosa, cheia de tabus, que recebeu desde cedo. Eles nasceram em 1964, mesmo ano do golpe militar.
Francisco Orellana e Zeferino
No ambiente da caatinga nordestina, onde vive, junto ao cangaceiro Zeferino e a pequena ave Graúna, o bode era um contraponto aos demais: Orellana tinha cultura, pois andava a comer de tudo, inclusive devorava livros e jornais…
Comer jornais era sempre um risco para o bode: volta e meia as notícias deixavam-no em estado de choque.
O “cangaceiro-macho-lutador” carinhoso chamado Zeferino, habitava com o bode e a Graúna, o “Alto da Caatinga”.

Graúna e Grauninha
Graúna fazia parte do trio nordestino criado pelo cartunista.
Nordestina típica e estereotipada, Graúna vivia com fome, além de sempre criticar o “Sul Maravilha” com questionamentos políticos que seus companheiros nunca sabiam responder. Se não era alienada, Graúna entretanto estava tão envolvida em seus próprios problemas (como chocar os ovos), que não tinha como levar a termo suas revoltas. Fazendo contraponto à ironia do bode Francisco Orelana.
Filha da Graúna, a Grauninha representa os filhos da fome e do descaso com os nordestinos à época da Ditadura. Seu nascimento foi um momento de esperança e renovação para a Graúna, mas viveu pouco, pois logo morreu de fome.

Cabôco Mamadô
um espírito-criança. Arteiro, é o protagonista de um cemitério de mortos-vivos em que eram enterrados os adversários intelectuais e morais de Henfil, acusados por ele de colaborarem com a ditadura militar e traz referência à entidade da umbanda e do catimbó chamada de Cabôco Mamador – espírito de uma pessoa que morreu ainda criança.
Fontes:
https://www.henfil.com.br/henfil.php
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc100812.htm