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No dia do Samba

a São Paulo de Adoniran Barbosa

O Brasil comemora, em 2 de dezembro, o Dia Nacional do Samba. Há duas histórias que se cruzam e que explicam o motivo das homenagens ao gênero nesta data, uma no Rio e a outra em Salvador.

No começo dos anos 1960, uma época em que a música norte-americana entrava com muita influência no Brasil, pairava no ar um certo receio diante de uma suposta ameaça aos gêneros nacionais. Neste contexto, entre os dias 28 de novembro e 2 de dezembro, foi realizado no Palácio Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro, o Congresso Nacional do Samba, que teve participação de nomes como Pixinguinha, Aracy de Almeida e Almirante.

Nesta ocasião, foi redigido um documento batizado de Carta do Samba, que versava sobre a importância do gênero, bem como sobre a necessidade de manter suas características fundamentais. Na página 6 do documento, um aviso: “foi sancionada lei estadual declarando o dia 2 de dezembro Dia do Samba, à base de projeto apresentado, nesse sentido, pelo deputado Frota Aguiar”. O projeto citado, no entanto, acabou vetado pelo governador Carlos Lacerda. Só acabou sendo sancionado em 1964.

Antes disso, em 1963, o vereador soteropolitano Luiz Monteiro da Costa também apresentou um projeto de lei, este na Câmara Municipal de Salvador, que “institui o Dia do Samba, manda preservar as características da música popular e dá outras providências”. Monteiro da Costa mencionava que a proposta era também uma homenagem ao compositor Ary Barroso, que acabara de receber o título de “Cidadão da Cidade de Salvador”. O vereador baiano, no entanto, também citava a Carta do Samba redigida no Rio em seu projeto de lei.

“Nas escolas de samba da Guanabara e nos redutos principais do samba, nessa data, o samba será festejado com o repicar de tamborins, com o ‘roncar’ das cuícas e com uma alvorada de 21 batidas no ‘surdo’. O tão esperado Dia do Samba também será comemorado pelas emissoras de rádio que apresentarão programas com gravações de nossa consagrada música popular”, diz trecho do documento histórico.

Com as duas manifestações políticas em torno do gênero, uma no Rio e outra em Salvador, passou-se a comemorar o Dia do Samba no dia 2 de dezembro. Ao longo do tempo, a homenagem ganhou proporção nacional.

A gente não pretende aqui nos estender em compreender, comentar ou tentar, pretensiosamente este ritmo a respeito do qual Dorival Caymmi já alertava em sua canção “Samba da Minha Terra”. Segundo Caymmi, “quem não gosta de samba, bom sujeito não é. É ruim da cabeça, ou doente do pé”.

Enfim, falar de samba é falar de um dos gêneros musicais preferidos dos brasileiros, e olha que há incontáveis variações de samba:

Samba-enredo – com origem no Rio de Janeiro na década de 30, é um samba que determina o ritmo dos desfiles das escolas de samba e aborda temas sociais e culturais.

Samba-de-partido-alto – é um samba de origem pobre, que tenta demonstrar a realidade de regiões carentes. Seus principais compositores são Moreira da Silva, Zeca Pagodinho e Martinho da Vila.

Samba-Pagode – um dos ritmos dentro do samba que mais fazem sucesso, surgiu no Rio de Janeiro nos anos 70, com letras românticas e ritmo repetitivo, tem como principais representantes grupos como: Fundo de Quintal, Raça Negra, Só Pra Contrariar, entre outros.

Samba-canção – com origem na década de 20 tem característica ritmo lento e letras românticas.

Samba-carnavalesco – são as famosas marchinhas que embalavam os carnavais antigos e bailes típicos.

Samba-exaltação – esse tipo de samba trazia um saudosismo com letras que mostravam as maravilhas brasileiras, junto com acompanhamento de orquestra.

Samba-de-breque – tipo de samba que tem interrupções para comentários no meio da música, com temáticas críticas ou humorísticas.

Samba de gafieira – com origem nos anos 40, tem ritmo rápido e forte com acompanhamento, muito comum em danças de salão.

Sambalanço ou Samba Rock – Com influência do jazz o surgiu entre as décadas de 50 e 60 e embalou boates em São Paulo e Rio de Janeiro. Tem como principais representantes Jorge Ben Jor, Wilson Simonal e mais recentemente Seu Jorge.

Samba praiano – A Academia de Samba Praiana foi criada em 10 de março de 1960, por um grupo de rapazes, oriundos das cidades de Pelotas, Rio Grande e também Porto Alegre.

Samba-de-morro – é um sub-gênero musical do samba, criado e difundido na década de 1930, na cidade do Rio de Janeiro, por compositores que frequentavam as rodas de samba da Turma do Estácio. De ritmo vivo, o samba de morro é um estilo autenticamente popular, que costuma ser acompanhado por um pandeiro, um tamborim, uma cuíca e um surdo. Suas letras em geral tratam de temas diversos como malandragem, mulheres e o cotidiano nos morros e favelas cariocas.

João Rubinato e o samba paulistano

Só por estes exemplos já dá para ver que a gente pode passar um ano inteiro de nosso blog apenas falando de samba, mas hoje, a homenagem vai para João Rubinato, caipira de Valinhos, interior de São Paulo, que se tornou uma referência incontestável do samba paulista e cantou a cidade em centenas de composições. 

Se você está aí pensando quem é esse tal de João Rubinato, é que ainda não dissemos que ele mesmo não achava seu próprio nome muito comercial e por isso resolveu adotar um nome artístico. Escolheu ser Adoniran Barbosa.

Adoniran compôs centenas de canções, muitas delas, sambas, em que a cidade de São Paulo foi protagonista ou coadjuvante e a gente vai fazer um rápido passeio por algumas delas, começando, como não poderia deixar de ser, por embarcar no trem, que sai agora, às onze horas. Embarque com a gente

Trem das Onze

A canção contrapunha o desejo boêmio do personagem, que aproveitava uma noite de amor no centro de São Paulo, à necessidade de estar em casa para que a sua mãe pudesse dormir, já que ela “não dorme enquanto eu não chegar”. Filho único, o personagem tinha “a sua casa para olhar”. Morava no bairro do Jaçanã e o trem das 11 horas da noite era o último a sair da estação da luz. Assim, se poder ficar “nem mais um minuto com a amada”, o personagem embarcava no trem mais famoso do samba paulista.

O Morro da Casa Verde

Os personagens dos sambas de Adoniram povoavam a cidade, como os sambistas que acordavam o morro da Casa Verde: “Silêncio é madrugada. No Morro da Casa Verde a raça dorme em paz.E lá embaixo meu colegas de maloca, quando começam a sambar não param mais”.

Coríntia

O tatuapé, sede da “Fazendinha” foi cantado em seu amor pelo Timão: 

“Como é bom ser alvi-negro,
Ontem, hoje e amanhã
Respirar no ar mistura
Do Tietê com Tatuapé
Lá do alto a velha Penha
Do Anchieta e Bandeirantes
Ver São Jorge lá da Lua
Abençoando a fazendinha
Onde mora um gigante
Tem igreja e tem biquinha
Coríntia,   Coríntia
Meu amor é o Timão

O Casamento do Moacir

Adoniran perambulava com seus personagens pela cidade, até que um dia foram convidados para ir à Vila Ré, no casamento do Moacir:

A turma da favela convidaram-nos
Para irmos assistir
O casamento da Gabriela com o Moacir
Arranjemos uma beca preta
E um sapato branco bem apertado no pé
E se apreparemos para ir
Na catedral lá da vila Ré…

Samba do Arnesto

Mas, nem só de convites bem sucedidos viveu Adoniran. Arnesto o convidou para um samba no Brás, então bairro operário do centro de São Paulo:

O Arnesto nos convidou
Prum samba, ele mora no Brás.
Nós fumo e não encontremo ninguém
Nós vortemo, cuma baita duma reiva
Da outra vez, nós num vai mais.

Certamente, quem ficou mesmo com ravia foi Ernesto Paulelli, amigo de Adoniran, o “Arnesto” da música, que cansou de negar em entrevistas, que tenha dado “cano” no amigo. 

E de todas as aventuras de Adoniran pela cidade, nem sempre seus “passeios” saiam lá muito bem, como cantou em Samba no Bixiga:

Samba no Bixiga
Domingo nós fumos num samba no bexiga
Na rua major, na casa do Nicola
À mezzanotte o’clock
Saiu uma baita duma briga
Era só pizza que avuava junto com as brajola

Adoniran foi um cronista da cidade de São Paulo, cantou suas mudanças, como em “Praça da Sé”:

Praça da Sé
Praça da Sé, Praça da Sé
Hoje você é Madame Estação Sé
Quem te conheceu há alguns anos atrás
Como eu te conheci
Não te conhece mais nem vai conseguir
Te reconhecer

Ou então, se espantou com uma obra aqui, bem do ladinho da Casa da Boia, convidando sua amada para conhecer o Viaduto Santa Ifigênia:

Viaduto Santa Ifigênia
Venha ver
Venha ver, Eugênia
Como ficou bonito
O viaduto Santa Ifigênia

Em Triste Margarida o galanteador, acompanhando a construção do metrô, tenta conquistar sua amada:

Triste Margarida
Você está vendo aquela mulher que vai indo alí
Ela não quer saber de mim
Sabem por que?
Eu menti pra conquistar seu bem querer
Eu disse a ela que trabalhava de engenheiro
Que o metrô de são paulo estava em minhas mãos
E que se desse tudo certo
Seria a primeira passageira
Na inauguração

Tudo ía indo muito bem
Até que um dia, até que um dia
Ela passou de ônibus pela via 23 de maio
E da janela do coletivo me viu
Plantando grama no barranco da avenida…

Adoniran cantou amores, dores, alegrias e tristezas. Suas ou de seus personagens por toda a São Paulo, como quando viveu seu primeiro amor, na Vila Esperança:

Vila Espeança
Vila Esperança, foi lá que eu passei
O meu primeiro carnaval
Vila Esperança, foi lá que eu conheci
Maria Rosa, meu primeiro amor
Como fui feliz, naquele fevereiro
Pois tudo para mim era primeiro 
Primeira rosa, primeira esperança
Primeiro carnaval, primeiro amor criança

Ou quando sentiu a dor da transformação urbana da capital derrubar a sua maloca:

Saudosa Maloca
“Se o senhor não tá lembrado
Dá licença de contar
Que aqui onde agora está
Esse edifício alto
Era uma casa velha
Um palacete abandonado
Foi aqui seu moço
Que eu Mato Grosso e o Joca
Construímos nossa maloca
Mais  um dia
Nem quero me  lembrá
Veio os home com as ferramentas
O dono mandô derrubá”

Ou ainda, quando foi despejado da favela

Despejo na Favela
Quando o oficial de justiça chegou
Lá na favela
E contra seu desejo / entregou pra seu narciso um aviso pra uma ordem de despejo
Assinada seu doutor, assim dizia a petição dentro de dez dias quero a favela vazia /
E os barracos todos no chão
É uma ordem superior

Adoniran, João Rubinato, Matogrosso, Joca, Ernesto, Moacir, Iracema, Eugênia, criador e criaturas se confundem em uma obra monumental, de poesia e reflexão que poucos compositores conseguiram imprimir à cidade de São Paulo de forma tão intensa e apaixonada que talvez, como se vê, atualmente, o “rebatizar” de estações do Metrô, com um complemento, como, “Estação Palmeiras – Barra funda”, não fosse exagero se pensar em “São Paulo – Adoniran Barbosa”.

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