Em dois locais icônicos da capital paulista
a luta pela preservação da memória negra
O Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, celebrado no Brasil em 20 de novembro, foi concebido no ano de 1971 no âmbito das lutas dos movimentos sociais contra o racismo. Proposto pelo poeta, professor e pesquisador gaúcho Oliveira Silveira, em reunião do Grupo Palmares, associação que reunia militantes e pesquisadores da cultura negra brasileira. Em analogia à construção da figura heróica de Tiradentes, ele propôs uma data que comemorasse o valor da comunidade negra e sua fundamental contribuição ao país.
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A data de 20 de novembro foi escolhida por ter sido este o dia da morte de Zumbi dos Palmares, no ano de 1695. Nascido em 1655 no Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, Capitania de Pernambuco e atual União dos Palmares, foi capturado e entregue ao padre missionário português Antônio Melo quando tinha aproximadamente seis anos. Batizado ‘Francisco’, Zumbi recebeu os sacramentos, aprendeu português e latim, e ajudava diariamente na celebração da missa.
Por volta de 1678, o governador da Capitania de Pernambuco, cansado do longo conflito com o Quilombo de Palmares, teria oferecido a seu líder, Ganga Zumba, a liberdade para todos os escravos fugidos desde que o quilombo se submetesse à autoridade da Coroa Portuguesa.
Consta que a proposta foi aceita pelo Ganga Zumba, mas Zumbi rejeitou a proposta e desafiou a liderança de Zumba. Zumbi tomou o poder e tornou-se o novo líder do quilombo de Palmares, mantendo sua resistência aos portugueses no maior quilombo do período colonial.
A Coroa Portuguesa queria a destruição de Palmares em em fevereiro de 1694 levaram a termo a maior invasão ao quilombo que resultou na morte de muitos de seus habitantes e no ferimento de Zumbi ferido.
Apesar de ter sobrevivido, e estar organizando a volta do quilombo, foi atacado novamente pelos portugueses em 1695, sendo morto neste ataque.
Teve a cabeça cortada, salgada e levada ao governador Melo e Castro, que ordenou que sua cabeça fosse exposta em praça pública, conforme carta que ele mesmo escreveu ao rei de Portugal:
”Determinei que pusessem sua cabeça em um poste no lugar mais público desta praça (Praça do Carmo, em Recife), para satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal, para que entendessem que esta empresa acabava de todo com os Palmares”.
Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra
Nascido da proposição de 1971 o dia que marca a reflexão sobre os negros na sociedade brasileira enfrentou longo caminho até ser oficializado como feriado nacional, no ano passado.
A representação dessa data, em contraposição ao dia 13 de maio, ganhou força a partir de 1978, quando o Movimento Negro Unificado defendeu a data como celebração nacional, mas um enorme distância e um longo caminho foi traçado até que a data tivesse o peso de hoje.
Efetivamente foi só no ano de 2003 que o Dia Nacional da Consciência Negra foi previsto como efeméride nos calendários escolares pela Lei nº 10.639, de 9 janeiro daquele ano.
A lei incluia na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o ensino obrigatório da “História e Cultura Afro-Brasileira” como parte do currículo oficial de toda a rede de ensino, pública e privada.
Datada de 10 de novembro de 2011, a lei nº 12.519 instituiu o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra como data a ser comemorada no dia 20 de novembro de cada ano.
Um projeto de lei proposto em 2017, para prever a data como feriado nacional, foi aprovado no Senado em setembro de 2021 e pela Câmara dos Deputados apenas em 2023, e depois disso a data foi instituída pelo presidente Lula no dia 21 de dezembro do mesmo ano, por meio da lei nº 14.759, que em seu artigo primeiro declara:
“Art. 1º Fica declarado feriado nacional o dia 20 de novembro, para a celebração do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra”.
A resistência da memória na capital paulista
Impossível para nós, do Blog da Casa da Boia, abordar a complexidade do significado da data, dos preconceitos sofridos, da discriminação em todos os âmbitos e das lutas dos negros cujas reflexões são sugeridas pela data de 20 de novembro.
Assim é que nos apoiamos nas memórias de dois lugares icônicos da cidade. A praça da Liberdade e o bairro do Bexiga.
Se perguntarmos a qualquer um nas ruas o que lhes vem à mente ao citar os dois locais provavelmente a resposta será os japoneses e os italianos.
De fato os dois bairros se notabilizaram pela presença destes imigrantes que ali se estabeleceram e por isso suas tradições, cultura, língua e gastronomia acabaram por virar símbolos do local.
Entretanto, tanto a Liberdade, quanto o Bixiga, em um passado relacionado aos negros que hoje lutam para que essas memórias “apagadas” na cidade, voltem ao conhecimento e fiquem gravadas na história.
Na praça central do bairro mais identificado com a cultura japonesa da cidade, encontra-se imponente, a estátua de uma mulher negra: Madrinha Eunice. A matriarca que veio do interior para a capital aos 12 anos e fundou a Lavapés, uma das mais antigas escolas de samba da cidade.
Nenhuma outra referência a personagens ou à cultura negra ali se encontram preservados.
Nem por isso, entretanto, é possível apagar a importância dos negros para a região.
Da forca à Liberdade, uma história negra
No local onde a estátua de Madrinha Eunice se destaca, nada indica que ali ficava o Campo da Forca – onde eram enforcados os condenados à pena de morte vigente no Brasil colonial, por mais de um século, entre 1765 e 1874.
Não é preciso ir muito longe para supor que a maioria dos enforcados no local eram negros, fugidos de seus “proprietários”, recapturados e ali enforcados como um “exemplo” e uma “advertência” aos escravos de que, se tentassem empreender fuga, teriam destino semelhante.
A barbárie que acontecia em pleno centro da capital há pouco mais de 150 anos tinha requintes de crueldade.
Em 1821, por exemplo, foram executados ali José Crioulo e João Congo, negros fugidios que depois tiveram suas cabeças decepadas e levadas para serem expostas em cidades do interior paulista.
Os corpos dos enforcados eram sepultados no Cemitério da Capela dos Aflitos, a poucos metros da praça.
Hoje, a capela, o antigo cemitério e o próprio Largo da Liberdade estão no centro de um movimento que quer destacar a história negra na região.
O historiador Wesley Vieira, pesquisador na Universidade de São Paulo (USP), resume bem o processo de “apagamento da memória da escravidão no local: “São Paulo teve um processo sistemático de apagamento das camadas da escravidão com narrativa de que foi criada pelos bandeirantes e jesuítas e desenvolvida pelos imigrantes”, diz Vieira.
“Foram criados uma série de símbolos para atestar essa narrativa e negar o passado de desumanização das pessoas escravizadas.”
“Esse processo de apagamento deu tão certo, que é difícil identificar marcos da história dos negros e dos indígenas na cidade que datam dos períodos colonial e escravocrata”, comenta o historiador.
Na época do Brasil colônia e depois durante o Império, a região onde hoje é a Liberdade era o centro de diversos equipamentos de opressão.
O pelourinho, onde os negros e indígenas escravizados eram torturados, ficava a poucos metros, onde hoje fica a praça do Tribunal de Justiça, na Sé.
Depois da desativação do cemitério da Capela dos Aflitos, com o fim da pena de morte, a construção foi ficando cada vez mais espremida por prédios construídos ao redor, conforme a Cúria católica vendia os lotes de terra de sua propriedade no entorno.
Com aluguéis baratos, até por sua história então recente, a região foi se tornando local de moradia para a população pobre, negra e indígena e também rota de fuga para os quilombos do Jabaquara e de Saracura.
Avançando ao Século XX, no local se estabeleceram os primeiros imigrantes japones que chegaram a São Paulo, isso 20 anos após a abolição da escravatura.
Com isso o bairro foi ganhando outros contornos e a memória negra sendo apagada.
Ainda mais, quando, na década de 1970, mais precisamente, em 1973, a municipalidade criou um um concurso de decoração do bairro e o local passou a contar com uma iluminação imitando as tradicionais lanternas japonesas, que permanecem lá até hoje.
Esta transformação puramente fincada em uma ideologia “mercadológica”, de criara uma “Tókio Paulistana”, contribuiu para o apagamento da memória negra do bairro.
O Quilombo do Saracura e o Bairro do Bixiga
Outro local de “apagamento” da memória negra é o bairro do Bixiga. Que abrigou o Quilombo do Saracura.
O hoje bairro central da cidade de São Paulo, até fins do século XIX era considerado um território semi-rural onde viviam e perambulavam os “povos da floresta”, indígenas, caipiras e quilombolas, além de toda a sorte de “personas non gratas” nos bairros mais nobres da cidade.
Com o crescimento da população negra no pós abolicionismo, nos finais do século XIX, a configuração geográfica do Vale do Saracura (região do bixiga) foi determinante para abrigar um dos primeiros quilombos urbanos de São Paulo, onde grande parte dos moradores eram compostos por lavadeiras, quituteiras, vendedores de ervas e comércio miúdo, que utilizavam as águas do rio para sobrevivência e trabalho.
Mesmo antes da Lei Áurea, com o auxílio de inúmeras irmandades religiosas negras e movimentos abolicionista populares como os “Caifazes”, o Quilombo Saracura foi o local de proteção de escravizados fugidos do “mercado de escravos” realizado no atual Largo da Memória, próximo ao Vale do Anhangabaú.
Mas, novamente, quando os imigrantes italianos começam a chegar em São Paulo e a ocupar a área passando a morar nas vilas operárias e cortiços, sua cultura começou a se sobrepujar à história negra da região.
Ainda assim, uma da expressões culturais dos negros da região resiste ao passar dos anos e se tornou o mote de um recente movimento de “redescoberta” da história do Bixiga.
Fundado em 1 de janeiro de 1930, o Cordão Carnavalesco e Esportivo Vae-Vae deu origem à Escola de Samba Vai Vai, uma das mais tradicionais da capital, que, depois de passar por algumas sedes provisórias conquistou seu galpão definitivo no entroncamento das ruas São Vicente, Lourenço Granato e Cardeal Leme.
Justamente neste local, a Linha 6-Laranja, do Metrô de São Paulo, vai erguer a estação 14 Bis. O início das obras no local não apenas fez com que a Vai Vai tivesse que abandonar a sua sede como, justamente por isso, as escavações localizaram um importante acervo arqueológico que remete à história da ocupação quilombola da região, levando a comunidade do Bixiga e inúmeros movimentos culturais a reivindicarem a preservação da Memória da Cultura Negra no bairro.
Em Ato Público realizado no dia 2 de julho de 2022, organizado pelo movimento Mobiliza Saracura/Vai-Vai – grupo formado por moradores do Bixiga, ativistas do movimento negro, professores, pesquisadores, religiosos, artistas, jornalistas, etc., teve início as reivindicações para a criação de um Memorial no local para abrigar os achados arqueológicos e par alteração do nome da Estação 14 Bis para Estação Saracura/Vai-Vai.
Embora muita luta ainda resta aos movimentos sociais para a preservação da memória história do local, uma vitória foi conquistada em 7 de junho deste ano. É a data da publicação do Decreto Estadual 68.589, que, em seu artigo primeiro decreta:
“A futura Estação 14 BIS da Linha 6 – Laranja, da Companhia do Metropolitano de São Paulo – METRÔ, passa a denominar-se Estação 14 BIS – Saracura”.
Fontes:
ttps://www.bbc.com/portuguese/articles/cglp5jyxelgo
https://institutobixiga.com.br/escavando-memorias-nos-vestigios-arqueologicos-do-quilombo-saracura/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Dia_Nacional_de_Zumbi_e_da_Consci%C3%AAncia_Negra