As memórias da repressão e da família Paiva
em São Paulo
Ainda estamos aqui. A frase já até desgastada de tanto uso nos últimos dias, é carregada de significado. Após um recente período em que o sistema democrático brasileiro foi submetido a uma prova de resistência, o sucesso do filme de nome parecido, “Ainda estou aqui”, inevitavelmente nos faz refletir sobre um período de exceção da história de nosso país e São Paulo guarda marcas desta época que, ainda aqui, hoje se prestam à preservar a memória dos tempos da ditadura militar.
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O tema do filme de Walter Salles, “Ainda estou aqui”, não é, exatamente, os chamados “porões da ditadura militar”, mas sim, a resistência de uma família atingida em cheio pelo regime de exceção, quando perde seu pai, marido e provedor da casa, após ser morto pelo aparato de repressão, tem que seguir a vida.
No centro desta trama real, a figura de Eunice Paiva, viúva do deputado e empresário Rubens Paiva, que se tornou o pilar de sustentação não apenas de seu núcleo familiar, mas uma voz de resistência a uma situação que, perdurando por mais de 25 anos no Brasil, deixa marcas que ainda estão em muitos lugares.
Em São Paulo, local que a família Paiva escolheu para reconstruir a vida após o assassinato de Rubens, memórias deste tempo que não pode ser esquecido, podem ser conhecidas por meio de espaços dedicados à resistência e a democracia.
O caso Paiva
O santista Rubens Beyrodt Paiva, engenheiro civil, empresário do ramo de construção, foi eleito deputado federal por São Paulo, em outubro de 1962, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Assumiu o mandato em fevereiro do ano seguinte e participou de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada na Câmara dos Deputados para examinar as atividades do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IPES-IBAD).
Supostamente criado para fins educacionais, o instituto desenvolveu uma ampla campanha político-ideológica para desestabilizar o governo João Goulart. Dentre as ações estavam o financiamento de parlamentares e grupos oposicionistas, a infiltração em movimentos populares e a disseminação de propagandas anticomunistas através de publicações, filmes e programas de TV, algo como temos hoje com as chamadas “fake news”, informações de procedência e confiabilidade duvidosa.
Com a tomada de poder que os militares realizaram, depondo o presidente João Goulart, em abril de 1964, o deputado Rubens Paiva teve seu mandato cassado, assim como outros deputados. Como muitos destes, Rubens Paiva se exilou na Europa após a cassação, tremendo pela própria vida.
Voltou ao Brasil ainda em 1964 e se mudou de São Paulo, onde morava com a família, para o Rio de Janeiro. Afastado compulsoriamente da política, Paiva se dedicou aos negócios de sua construtora, mas nunca deixou de ter relações com os deputados cassados.
Por essas relações, os militares suspeitaram que Paiva tivesse ligação com o ex-capitão do Exército Carlos Lamarca, que desertara para se tornar um opositor do regime.
Em 20 de janeiro de 1971 supostos integrantes da Aeronáutica invadiram a casa de Rubens Paiva e o levaram detido para o quartel do comando da III Zona Aérea, no Rio de Janeiro, onde foi interrogado e torturado. No dia seguinte foi levado para o Destacamento de Operações Internas (DOI-CODI), no quartel da Polícia do Exército, onde foi novamente torturado.
A versão oficial dos militares dizia que entre uma localidade e outra, o Volkswagen fusca, que conduzia Rubens Paiva teria sido abalroado e atacado por terroristas.
Segundo esta versão, apesar de estar sendo escoltado por três militares dentro do carro, Paiva teria conseguido fugir dos três enquanto estes trocavam tiros com os desconhecidos, teria entrado ileso no carro que atacara os militares e fugido com eles.
O fato é que nunca mais Paiva fora visto. Nem seu corpo foi localizado.
A esposa Eunice e a filha mais velha do casal, Eliana, de 15 anos, também foram detidas no mesmo dia em que Paiva foi preso. Eunice permaneceu por 12 dias presa pelos militares enquanto Eliana foi solta no dia seguinte.
A volta para São Paulo e atuação por direitos dos parentes de desaparecidos e indígenas
Um tempo após o episódio, Eunice decide retornar para São Paulo, onde a família então seguiu a vida sem a presença de Rubens Paiva.
Nascida no bairro do Brás, em uma comunidade italiana Eunice, cujo nome completo era Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, antes de ir para o Rio, já havia se mudado para o bairro de Higienópolis, para onde retornou com os filhos.
Formou-se, ainda jovem, em letras, na Universidade Mackenzie. Depois, já com seus 40 anos, retornou à universidade para cursar direito, onde se formou aos 47 anos.
A partir de então, teve uma relevante atuação na luta pelo reconhecimento de que os desaparecidos durante o regime militar foram assassinados pelo Estado brasileiro.
Foi uma das principais forças de pressão que culminou com a promulgação da Lei 9.140/95, que reconheceu como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação em atividades políticas durante a ditadura militar, tendo sido a única parente de desaparecido convidada a assistir à solenidade em que Fernando Henrique Cardoso assinou a lei.
Em 1996, após 25 anos, Eunice conseguiu que o Estado brasileiro emitisse oficialmente o atestado de óbito de Rubens Paiva.
Em sua atuação como advogada dedicou-se contra a violência e expropriação indevidas de terras de populações indígenas.
Eunice Paiva faleceu na capital paulista, em 2018, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Araçá.
A família Paiva se reconstroí na cidade de São Paulo
Apesar de terem passado a infância no Rio de Janeiro, os filhos do casal Eunice e Rubens Paiva constituiram seu legado pessoal e profissional em São Paulo.
O único filho homem, Marcelo Rubens Paiva, dedicou sua vida à literatura, mas foi também um comunicador que atuou na TV Gazeta e na TV Cultura, roteirizando, dirigindo e mesmo apresentando programas como “Leitura Livre” e “Fanzine”.
Vera Paiva é uma psicóloga social e professora titular na Universidade de São Paulo, tendo dedicado sua atuação acadêmica e profissional à inovação das práticas de saúde, principalmente com relação a Aids.
Eliana Paiva (única a ser detida pelos militares), formada pela USP, seguiu carreira como jornalista e professora, além de editora de arte.
Maria Beatriz Paiva, assim como a irmã Vera, seguiu carreira na psicologia.
Para não esquecer
Impossível não refletir sobre a questão do chamado Estado Democrático de Direito, um modelo de regime social em que o poder do Estado é limitado pelos direitos dos cidadãos, que são garantidos por meio de uma Constituição e de governantes eleitos democraticamente. Estes e as instituições do estado devem respeitar a Constituição e os direitos dos cidadãos, não podendo adotar atitudes que violem as leis. Assim é o estado ideal.
São Paulo guarda inúmeras marcas da época em que o país vivia um regime de exceção, quando o Estado (caracterizado pela ocupação dos militares) era dissociado do compromisso de garantir direitos e agia ao bel prazer do grupo ditatorial do momento.
Um destes espaços de memória e resistência podem hoje ser conhecidos pela população.
O Memorial da Resistência de São Paulo é o maior museu de história dedicado à memória política das resistências e da luta pela democracia no Brasil, e tem como missão a valorização da cidadania, da pesquisa e da educação a partir de uma perspectiva plural e diversa sobre o passado, o presente e o futuro.
Aberto ao público em 2009, o museu é um lugar de memória dedicado a preservar a história do prédio onde operou entre 1940 e 1983 o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops/SP).
O espaço tem uma área de exposição permanente e exposições temporárias, ações educativas, atividades para pessoas com deficiência e programações culturais gratuitas, o museu se consolidou como referência em Educação em Direitos Humanos, promovendo o pensamento crítico e desenvolvendo atividades sobre Direitos Humanos, Repressão, Resistência e Patrimônio.
O Memorial é gerido pela Associação Pinacoteca Arte e Cultura (APAC) e atua como membro da Coalizão Internacional de Lugares de Consciência.
Pode ser visitado de quarta a segunda (fecha às terças) das 10h às 18h e tem entrada gratuita. Os ingressos do Memorial estão disponíveis no site e na bilheteria do prédio, mas fique atento, pois todas as pessoas, inclusive menores de idade, precisam reservar seus ingressos, o que pode ser feito aqui neste link.
O futuro da sede do Doi-Codi
Quem passa pelas proximidades das ruas Tutóia e Tomás Carvalhal, no bairro do Paraíso, uma das regiões nobre da cidade de São Paulo, vê as instalações de uma delegacia de polícia. O 36º Distrito Policial, local de manutenção da ordem, de acolhimento ao cidadão que necessita dos serviços de polícia.
Mas, muitos desconhecem o fato que o edifício e outros próximos foram a sede do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, o DOI-Codi.
O sistema DOI-Codi nasceu sob o comando do Exército e contaria com unidades instaladas em todas as suas áreas de jurisdição. Cada Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) era responsável pelo planejamento de ações de segurança e informação, incluindo capturas, averiguações e interrogatórios de suspeitos.
O órgão paulista foi reconhecido como um dos mais atuantes centros de tortura, assassinato e desaparecimento forçado de perseguidos políticos do país. Desde a sua extinção, no início da década de 1980, o local abriga a delegacia.
O conjunto de edifícios foi tombado em 2014 pelo CONDEPHAAT e em 2017 pelo CONPRESP, com recomendações para criação de um centro de memória.
Após seu tombamento, formou-se, em 2018, um grupo de trabalho multidisciplinar (GT DOI-Codi) composto por pesquisadores e especialistas de várias áreas e instituições para estudos, atividades e pesquisas de arqueologia forense, visando reverberar conhecimento e reflexão em torno de sua memória.
O lugar atualmente é objeto de uma pesquisa arqueológica, que visa aprofundar os conhecimentos sobre o prédio construído e também identificar as pessoas que passaram pelo local — já que muitos não entravam nos registros oficiais e as entidades que integram o GT DOI-Codi lutam para transformar o complexo, assim como é o Memorial da Resistência, em um centro de memória sobre o regime militar.
Fontes:
https://www.paginaaberta.com.br/fatos/como-estao-os-filhos-de-rubens-e-eunice-paiva-hoje-em-dia.html
https://pt.wikipedia.org/wiki/Rubens_Paiva
https://pt.wikipedia.org/wiki/Eunice_Paiva
https://memorialdaresistenciasp.org.br/lugares/instituto-de-pesquisas-e-estudos-sociais-ipes/