A “casa” da nossa Casa
Uma breve história da Rua Florêncio de Abreu
Rua Florêncio de Abreu, vista a partir do Largo São Bento.
Quem desce hoje na estação São Bento do Metrô e, a partir do largo que leva o nome do santo e da bela igreja em sua homenagem, começa a descer a movimentada rua lateral, tem o sentido da audição como o primeiro despertado.
“Olha o carrinho de controle remoto”. “Ótica, ótica, faça sua armação em 40 minutos”. “Deliciosa refeição por quilo por apenas 20 reais”. “Aqui tem de tudo. O que precisa hoje?”…
Não é preciso andar mais do que cinquenta passos a partir do Largo São Bento para essa sinfonia de ofertas começar a soar nos ouvidos desavisados do visitante que chega por ali pela primeira vez. Mas, para os milhares de trabalhadores da região, ou para os também milhares de clientes assíduos das lojas da Rua Florêncio de Abreu, o burburinho dos metros iniciais da outrora conhecida “Rua das Ferramentas”, não assusta. Ao contrário. Essa mistura eclética dos “puxadores” esses funcionários das lojas que anunciam pelas calçadas os seus produtos, com funcionários e clientes é uma relação amistosa.
Não é raro ver um “bom dia Sr. Zé”, um “Tudo bem João”? um “Bom trabalho Maria”…
Quem inicia a descida da rua, passando por essa recepção inicial, vai deixando para trás o barulho característico dos ambulantes e puxadores e já tem outro sentido despertado. A visão.
“Botecos” e restaurantes, bem em frente ao muro lateral da igreja, um ao lado do outro, são a primeira visão do visitante e convidam a uma refeição farta a preços populares. Mas não é a comida exatamente, que chama a atenção e sim a variedade de produtos encontrados nas já nas primeiras lojas.
Pequenas galerias vendem de miçangas a produtos eletrônicos, de “óculos de camelô” a caixas de som portatil, de pilhas, cabos, carregadores de celular a gadgets eletrônicos.
Finalmente, passados cerca de 100 metros a partir do largo São Bento, já a partir da esquina com a Ladeira da Constituição, a rua assume a característica que a tornou famosa. Lojas e mais lojas voltadas a profissionais de mecânica, elétrica, refrigeração, construção, marcenaria, ferramentaria, hidráulica e entusiastas do “faça você mesmo”.
Ainda com o vertiginoso crescimento do comércio virtual, a rua oferece a oportunidade única de encontrar uma loja com milhares de modelos de parafusos e porcas a pronta entrega. Outra com dezenas de modelos de bombas para poço, lojas que vendem uma variedade de plásticos industriais, outras especializadas em colas e adesivos, lojas de ferramentas de corte especiais, lojas com equipamentos de proteção individual, outra que vende abrasivos, e, claro a Casa da Boia, a única da rua especializada em cobre, metais não ferrosos e hidráulica.
Se hoje, no Séc. XXI, a rua ainda é um importante centro comercial especializado da cidade, foi lá, nos finais do Séc. XVIII que ela se tornou fundamental para o crescimento da capital paulista.
Um caminho para o Guaré
São Paulo nasceu no topo de uma colina, na confluência dos rios Anhangabaú e Tamanduateí. Um ponto estratégico, já conhecido pelos indígenas da região, localizado entre a várzea destes rios, que se estendia em uma imensa área plana para o leste e as colinas que se erguem ao sul/sudeste, hoje a região do Paraíso e avenida Paulista.
Ponto estratégico para as tropas coloniais vindas do litoral pela Serra do Mar e que avançavam pela região do atual ABC paulista (as cidades de Santo André, São Bernardo e São Caetano) havia um porém, na localização onde a cidade nasceu.
O vale do rio Anhangabaú representava uma dificuldade a ser transposta para que a cidade pudesse avançar no sentido oeste, em que se criaram nos séculos seguintes à fundação da cidade, inúmeras áreas de pastagem e de produção agrícola, na região do atual bairros da Luz e Bom Retiro, então conhecida como “Campos do Guaré”.
Com esta dificuldade de transposição do Vale do Anhangabaú a Coroa Portuguesa ordena que se crie um caminho alternativo aos campos do Guaré. Por volta de 1780 foi então aberto um caminho que, partindo das proximidades do núcleo central da cidade, descia em direção à várzea do Tamanduateí, contornando o curso do rio, passando por cima do rio Anhangabaú e subindo, a partir da outra margem do rio em direção aos Campos do Guaré.
Esta via de ligação, quase uma pequena estrada de cerca de quatro ou cinco quilômetros, foi fundamental para a integração do núcleo central com o lado oeste da cidade, mas, por mais de 100 anos, quando a construção do Viaduto do Chá, em 1892, criou um novo caminho de interligação destas áreas.
O caminho simples dá lugar a uma importante rua em que o primeiro automóvel Ford sai da linha de produção
Em fins do século XIX e início do XX, a Florêncio de Abreu passou por profundas transformações. A antiga via onde ferradores de animais e cocheiros alugavam carruagens e cavalos deu lugar a imponentes edificações, a exemplo do Laboratório Pharmaceutico e Directoria do Serviço Sanitário, estabelecimento dividido em dois pavimentos; no térreo, havia a farmácia na parte frontal e nos fundos o laboratório, enquanto que, no andar superior, funcionavam a diretoria e a seção demográfica.
A primeira era responsável pelas questões sanitárias do Estado, enquanto a segunda emitia boletins mensais acerca do movimento meteorológico e populacional, com número de nascimentos, óbitos e casamentos. As funções atribuídas a esta repartição eram relevantes, considerando o contexto sanitário da cidade.
A rua abrigou o Éden Club, localizado no número 22: um sobrado com um pequeno teatro na sala da frente e diversas mesas para jogos em seu interior, indicando o surgimento de novos hábitos e a incorporação cada vez maior do lazer na vida cotidiana da cidade.
Em uma das esquinas da rua ficava a Companhia Industrial, com atividades de fiação, tecelagem e tinturaria e com cerca de 400 operários; a fábrica de móveis Santa Maria; fábrica de livros Manderbach & Co.; a fábrica de confeitos dos Irmãos Falchi e a fábrica de bebidas Matinho Chaves & Comp, entre outras.
A diretoria da Ford Motor Company nos Estados Unidos aprovou a criação da filial brasileira no dia 24 de abril de 1919, com o capital inicial de US$ 25.000 e já em 1º de maio a empresa iniciou a construção da linha de montagem no galpão na rua Florêncio de Abreu, com peças importadas. Do local saiu o primeiro icônico “Ford Modelo T” do Brasil.
Localizado no nº 452 o galpão ainda existe e tem sua fachada em relativo bom estado de conservação.
Nela Rizkallah Jorge constrói a Casa da Boia
Já no século XIX, a rua recebe o seu primeiro nome oficial: “Rua da Constituição”, homenagem ao juramento da primeira Constituição do Brasil Independente, que ocorreu aos 25/03/1825. Nessa época, a rua chegou a ter, simultaneamente, duas denominações: “Rua da Constituição” no trecho entre o Largo de São Bento e a “Ponte do Anhangabaú” (atual Viaduto Florêncio de Abreu) e “Rua Miguel Carlos”, após aquela ponte.
Em 1881, este logradouro teve o seu nome alterado para “Rua Florêncio de Abreu”, uma homenagem ao então Presidente da Província que muito se empenhou para que o governo despendesse a quantia de 100 contos de réis com o calçamento da rua.
Tendo chegado ao Brasil em 1895, as informações disponíveis dão conta de que Rizkallah Jorge Tahan, primeiramente se empregou em uma pequena fundição da rua Florêncio de Abreu, tendo comprado a empresa três anos depois para fundar a Rizkallah Jorge e Cia, que, como já falamos e outras postagens, depois ganharia o nome “Casa da Boia”.
O fato é que Rizkallah Jorge estabeleceu na rua o seu comércio, a partir de 1898. Alguns anos depois, construiu o sobrado icônico do número 123, inaugurado no ano de 1909 e que é a nossa sede até hoje.
Em grande medida, a crescente importância que a Rua Florêncio de Abreu foi assumindo com o passar dos anos decorria de sua proximidade com a Estação da Luz, de onde partiam os trens carregados de mercadorias importadas e chegavam os estrangeiros desembarcados no porto de Santos rumo à capital paulista e todo o interior de Estado.
Em geral as empresas que produziam e vendiam equipamentos voltados aos segmentos agrícola, de infraestrutura, urbano e residencial, optaram por se instalar em pontos estratégicos de circulação de pessoas, próximas às ferrovias e com grande contingente de mão de obra disponível, tudo o que a Florêncio de Abreu oferecia.
Desta forma a escolha de Rizkallah Jorge de instalar seu comércio neste logradouro foi uma estratégia comercial, que associada a outras propiciou alavancar suas vendas.
Patrimônio arquitetônico único na capital foi motivo de estudos e tombamento
A importância histórica da Rua Florêncio de Abreu e a riqueza de seu patrimônio arquitetônico motivaram a Prefeitura de São Paulo a promover o tombamento de diversos imóveis da Rua Florêncio de Abreu.
O início desse processo se deu no ano de 1974, quando a Coordenadoria Geral do Planejamento (Cogep) contratou Benedito Lima de Toledo e Carlos Lemos, professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), para listarem os bens de importância histórico-arquitetônica para o município.
Este estudo, apontou diversos imóveis de interesse e foi base para a criação das áreas especiais Z8-200 (zonas da cidade que compreendem estes imóveis) criadas pela Lei n.º 83.285 de 1975 e para o tombamento de inúmeros imóveis da região por meio das Resoluções 06/91 e 37/92.
Dentre os imóveis tombados, estava a Casa da Boia, uma história que você vai conhecer em detalhes em nosso próximo post.