A história do tombamento
e preservação da Casa da Boia
O edifício sede da Casa da Boia, localizado no centro da cidade de São Paulo, é um sobrado em estilo eclético,construído na primeira década do Séc. XX. Embora nossa empresa tenha sido fundada pelo Imigrante Rizkallah Jorge Tahan, em 1898, foi só 11 anos após o início de suas atividades que a Casa da Boia contaria com uma sede que abrigou a produção e a loja no andar térreo e a residência de família Rizkallah no andar superior.
Neste início do Séc. XX a Casa da Boia já havia vivido um crescimento em relação aos seus primeiros anos, Rizkallah Jorge, que havia migrado sozinho para o Brasil em 1895, já trouxera a sua esposa para o país e o capital acumulado permitiu a construção da residência que abrigaria a família na década seguinte.
Rizkallah Jorge não economizou na nova residência. Ergueu um sobrado ricamente ornamentado em sua fachada, que apresentava elementos da cultura árabe e ocidental, como a data da edificação, expressa em algarismos romanos e árabes.
Gradis delicados, com inspiração orgânica, típicos da Bele Epóque, contrastavam com com o uso do granito nos acessos à loja. Em seu interior, delicadas pinturas nas paredes, madeiras nobres, ambientes amplos e uma planta generosa em espaços de convivência garantiam o conforto da família Rizkallah até se mudarem, uma década depois, para um palacete na Avenida Paulista, local para onde se mudou praticamente toda a elite econômica paulistana do início do Séc. XX.
Tendo perdido a função de moradia da família a partir da década de 1920, o andar superior do sobrado da rua Florêncio de Abreu passou por vários usos. Foi até uma pensão, em determinado momento.
A empresa, que nunca deixou de funcionar no local (e funciona até hoje) passou a ocupar as salas da antiga residência e a adaptá-las às necessidades comerciais, naturalmente, realizando inúmeras intervenções para adequar aos objetivos dos departamentos que ali se instalavam.
Os negócios fluiam, a empresa crescia e crescia a ocupação do sobrado a tal ponto que, com o passar das décadas as adequações e, principalmente as sucessivas repinturas das salas haviam escondido sob camadas de novas tintas, a sua pintura original.
A fachada do imóvel, por sua vez, recebia os cuidados básicos, e a ação do tempo fazia o seu normal, ou seja, deteriorar os materiais expostos às intempéries e à poluição da grande cidade.
Após 50 anos um outro olhar sobre o sobrado
A família do fundador deixou a residência da Rua Florêncio de Abreu no início da década de 20. Passados 50 anos, no Plano Diretor de 1972 foi elaborada uma nova proposta com zonas e perímetros delimitados, com o objetivo de estabelecer equilíbrio entre as diferentes funções urbanas, como habitação, trabalho, lazer e circulação.
Em 1974 a Coordenadoria Geral do Planejamento-COGEP contratou Benedito Lima de Toledo e Carlos Lemos, urbanistas e professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, para percorrerem o centro da cidade de São Paulo listando e i identificando imóveis que tivessem importância histórico-arquitetônica para o município.
Esta iniciativa deu origem às chamadas Zonas Especiais Z8-200, criadas pela lei 83.285 de
1975, que abrangiam imóveis de caráter histórico ou de excepcional valor artístico, cultural ou paisagístico, destinados à preservação.
Neste estudo os arquitetos colocaram a sede da Casa da Boia com um destes imóveis que mereciam atenção do município, já que se enquadrava nos critérios de importância histórico-arquitetônica.
Porém, foi quase 20 anos depois que a cidade de São Paulo realizou o tombamento do Vale do Anhangabaú, por meio da Resolução 37/92 do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – Conpresp, que determinou o tombamento de 293 edificações e 9 logradouros públicos no entorno do Vale. Dentre os imóveis tombados encontrava-se o edifício-sede da Casa da Boia.
“Eu não havia tido conhecimento deste tombamento à época. Vim a descobrir anos depois, quando a prefeitura propôs a alguns proprietários de imóveis da rua que aderissem a um programa de revitalização, de restauração das fachadas de seus imóveis, no ano de 1996”, conta Mario Roberto Rizkallah, diretor da Casa da Boia.
“Fui um dos poucos na rua que aceitou fazer a restauração da fachada da forma correta. Uma coisa é contratar um pintor e dar uma mão de tinta na parede, outra, bem diferente, é promover uma restauração com caráter de preservação histórica, muito mais complexa e custosa”, lembra Mario.
A restauração da fachada e a preservação do imóvel tombado
Assim foi que, para realizar a restauração da fachada de acordo com critérios técnicos adequados foi contratada uma empresa especializada, a Gepas Arquitetura e Restauração.
“No decorrer deste processo que, inicialmente iria restaurar apenas a fachada, o Gino (arquiteto responsável pela restauração) disse para mim que ele apostava que, nas salas do que então eram os departamentos da empresa haviam ricas pinturas ornamentais. Autorizei que ele pesquisasse uma das salas e não demorou para que ele achasse a cobertura original da parede com uma linda pintura”, lembra Mario Rizkallah.
Corria já o ano de 1998, centenário da Casa da Boia e o que era para ser apenas uma restauração da fachada terminou com a restauração, também de duas salas do andar superior. Nelas foi instalada uma mostra permanente de documentos, objetos, ferramentas e maquinários utilizados nas primeiras décadas da Casa da Boia, além de produtos fabricados pela empresa.
Em 2003, quando a empresa completou 105 anos, mais duas salas do andar superior foram restauradas.
Atualmente várias outras salas do imóvel já passaram por prospecção a fim de identificar suas características originais e esperam sua vez de também serem restauradas.
Um imóvel tombado, seja pela municipalidade, por um estado, ou pela união, não se torna um bem público. Ele continua sendo uma propriedade privada cujo proprietário passa a ser obrigado a não realizar nenhuma intervenção sem autorização do órgão responsável pelo tombamento.
Todavia, o órgão público que decreta o tombamento de um imóvel particular não destina qualquer verba para a sua conservação, que fica totalmente a cargo de seu proprietário.
Não à toa, ao se caminhar pela rua Florêncio de Abreu, que abriga dezenas de imóveis tombados, é facilmente perceptível que esta fórmula não ajuda à preservação do patrimônio arquitetônico, visto que a maior parte destes imóveis encontra-se em péssimo estado de conservação.
“Eu não me sinto prejudicado pelo tombamento da Casa da Boia, porque eu mesmo ‘tombei’ o imóvel. Quer dizer, toda a conservação do prédio é feita por mim, já que a empresa ocupa o edifício e também porque tenho todo interesse em manter esse legado, mesmo sem qualquer apoio”, afirma Mario Rizkallah.
Quem entra no sobrado nº 123 da Florêncio de Abreu, sede da Casa da Boia, faz uma viagem ao tempo. Encontra, logo, uma loja com elementos preservados tal qual eram no dia de sua inauguração, há mais de um um século.
Mais do que isso, encontra um ambiente em que o moderno ‘conversa’ com o passado, tanto na arquitetura, quanto no conceito do próprio espaço, que preserva objetos originais do início do Séc. XX junto com produtos tecnológicos. Encontra ainda referências explícitas à história da empresa e admira um minucioso trabalho de recuperação dos antigos moldes da fundição, coordenado pela diretora Adriana Rizkallah, responsável, também, pela rigorosa manutenção do imóvel.
Manutenção física e reinvenção de conceitos
“Manutenção não é ‘apagar incêndio’. Exige um planejamento diário, semanal, mensal e anual de procedimentos que garantem não apenas o bom funcionamento das instalações, mas também a preservação deste patrimônio arquitetônico”, explica Adriana Rizkallah.
À frente da diretoria de projetos, manutenção e cultural desde 2014, Adriana trouxe à Casa da Boia uma nova visão integrada em que manutenção, preservação e as atividades comerciais se completam, culminando em atividades que exploram o potencial da edificação.
“Quem não se encanta ao entrar na Casa da Boia? Quem não se sente acolhido? Não tem algum tipo de emoção despertada? A Casa da Boia é mais do que um imóvel, é mais do que uma loja, é feita de comunidades. O encanador, o eletricista, o artesão, o artista acadêmico, o artista de rua, o profissional, o amador. Todos convivem neste ambiente criativo que ao mesmo tempo reverencia a sua história.
O que desejamos é isso, difundir nossa história e promover novas atividades trazendo esses grupos diversos para a Casa da Boia. É o cliente e essas comunidades, fazendo parte deste processo e construindo essa reinvenção do espaço e da cultura dentro da Casa da Boia”, finaliza Adriana.