A representação da natureza
na arquitetura da Casa da Boia
“Cores, Flores e Sabores” é o tema de nossas atividades na Casa da Boia nos meses de setembro e outubro. A primavera, com sua explosão de flores coloridas, e os sabores de renovação, significado maior da estação, inspiram sensações que vamos trazer ao universo de nossas postagens deste período.
Uma destas sensações é a riqueza de detalhes que encontramos nas áreas de nosso sobrado sede. A inspiração da natureza está presente em inúmeras referências do imóvel, que foi tombado pelo patrimônio histórico municipal em 1992.
Construído pelo Imigrante sírio Rizkallah Jorge Tahan, o belo sobrado, talvez o único que ainda preserva as suas características originais na rua Florêncio de Abreu, foi sede da fábrica de materiais hidráulicos, abrigando, ao mesmo tempo, a loja (que aliás, atualmente ocupa o mesmo belo salão, no térreo) e a residência da família Rizkallah, no andar superior.
Embora a empresa tenha sido fundada em 1898 o imóvel de fachada amarela data de 1909, em um estilo arquitetônico inspirado no “art noveau”, movimento que, embora ressalte as técnicas construtivas modernas do final do Séc. XIX e início do Séc. XX, incorporava elementos do naturalismo, das curvas suaves e orgânicas, da decoração em padrões suaves, embora marcantes.
Essa expressão das curvas que remetem à natureza são marcantes em nosso sobrado nos elementos de ferro da fachada. Os gradis da sacada do andar superior primam pelas curvas suaves que formam uma linha visual harmoniosa.
São também nos detalhes de ferro da ornamentação das portas que se encontram outras referências às formas orgânicas: “galhos e folhas” emolduram os vitrais das portas de pinho de riga.
Quem entra no imóvel e encontra o “salão de vendas” com grande parte de seu mobiliário original abrigando materiais hidráulicos, boias, produtos de cobre, pode até demorar a perceber, mas, discretas, junto ao teto, uma faixa de ornamentação em tons de azul, restaurada da pintura original do imóvel, traz mais uma representação das formas da natureza, em um padrão floral, delicada pintura em meio à profusão de produtos.
No andar superior, no espaço dedicado à residência da família, a presença dos elementos que remetem à natureza é ainda mais evidente, principalmente no ambiente que, quando da inauguração do imóvel, era o espaço de convivência, o que se pode chamar de sala de visitas. Hoje, o espaço que abriga o Museu Rizkallah Jorge.
Em um suave tom de verde que remete à cor predominante das matas, as paredes desta parte do sobrado trazem a referência das formas orgânicas das plantas, em uma trama delicada, pintura à mão de execução impecável, um padrão que se repete e preenche a metade superior das paredes.
Em outras salas, mudam o tom predominante. Amarelo, lavanda, ocre são vestígios das pinturas originais nas quais se pode perceber, ainda que diferentes da sala principal, já restaurada, as mesmas referências às formas da natureza.
Aliás, é também em uma destas salas que Zekié Nacacche (veja aqui o post sobre a história da esposa de Rizkallah Jorge) mantinha uma sala de costura, o seu espaço pessoal na casa.
O tempo quase apaga a memória do imóvel
A riqueza dos detalhes arquitetônicos e as referências orgânicas sempre estiveram presentes no sobrado nº 123 da Rua Florêncio de Abreu. O que não quer dizer que tenham sido sempre percebidos.
Na verdade, um tempo obscuro quase apaga de nosso conhecimento o que hoje vemos com admiração.
Rizkallah Jorge e a família ocuparam o belo imóvel por um período até relativamente curto. Construído em 1909, o sobrado foi residência até o começo dos anos 1920, quando a família se muda para outra casa, esta, na recém inaugurada Avenida Paulista.
Mudou a família, mas o sobrado da Florêncio de Abreu, nunca deixou de ser a loja que existe até hoje.
Sem o olhar cuidadoso dos fundadores da Casa da Boia, e atravessando décadas de uso comercial, a preservação arquitetônica, como aliás, em toda a São Paulo, não era algo valorizado no decorrer do Séc. XX. Ao contrário. A “cidade que nunca dorme” via seus belos casarões do início do século serem derrubados para a construção de novos e “modernos” imóveis.
Ter sido sempre a sede da empresa pode ter prejudicado a preservação em determinado momento, mas nunca ter saído dos cuidados da família Rizkallah, foi determinante para a recuperação do casarão no final dos anos 90.
Restaruação da fachada inicia um novo ciclo para o sobrado
Corria o final da década de 1990. Mario Roberto Rizkallah, neto do fundador da Casa da Boia, estava à frente do negócio e às voltas com um imóvel descaracterizado.
Foi quando a proximidade da comemoração dos 100 anos da Casa da Boia fez o empresário dedicar um olhar apurado ao tesouro escondido.
“Nem sabia que o imóvel havia sido tombado. Descobri quando, em 1996, começamos a estudar a reforma do sobrado. O que seria uma simples reforma, acabou se tornando um projeto de restauro da fachada e, quando se inicia um processo desse porte, você não pode simplesmente ‘jogar uma tinta’ em cima do imóvel. Precisa respeitar uma série de exigências dos órgãos de proteção ao patrimônio”, comenta Mario Rizkallah.
“Contratamos então uma empresa especializada em restauração arquitetônica. Que coordenou todos os trabalhos de pesquisa e a execução da obra de restauração para que tivéssemos nosso sobrado novamente com as características originais”.
A primeira restauração, que incluiu duas salas do andar superior, foi concluída em 1998, revelando novas cores, texturas e pinturas que remetem às formas orgânicas, até então praticamente despercebidas.
No ano de 2003, mais duas salas do andar superior passaram por restauração, novamente revelando os detalhes de pinturas delicadas e igualmente remetentes à inspirações florais.
Processo contínuo de descobertas e ressignificação
Vale ressaltar que todas as iniciativas de preservação e restauração do sobrado foram executadas com recursos próprios da Casa da Boia. Logo, sem financiamento de qualquer natureza, não é possível executar um projeto de restauro integral de uma única vez.
Isso significa que prospecções feitas nas paredes de outras áreas do imóvel já indicaram que as pinturas originais seguem a mesma linha, de valorização e representação dos elementos e formas que remetem à natureza. Pequenos tesouros aguardando para serem revelados.
Mas, o olhar curioso e atento de outra personagem decisiva nessa história de preservação, ajuda a ressignificar objetos, dar sentido a ideias e unir passado e presente no ambiente da Casa da Boia.
A diretora de projetos, Adriana Rizkallah, também responsável pela manutenção do patrimônio do imóvel, traz, na ambientação das áreas da empresa referências e objetos da própria história.
Moldes antigos das peças fabricadas hoje compõem a decoração, objetos recuperados, como gradis de ferro, ganham nova função e peças históricas, como a testeira de um antigo mostruário, agora restaurado, compõem uma linguagem de respeito ao passado e preservação da memória para o futuro.
Até mesmo nas referências comerciais, na vitrine da loja, uma releitura das possibilidades das chapas e bobinas de cobre remetem às flores, um “link” entre a abordagem comercial e as referências arquitetônicas.
Da inspiração à materialização
Não é só a inspiração nas formas orgânicas presentes na construção e decoração originais da Casa da Boia que nos remetem às referências de cores, flores e sabores. Elas são também, literais.
Local que nos reserva sempre uma surpresa a um olhar atento, a Casa da Boia tem em uma área de convivência dos colaboradores, um jardim florido que acolhe, há mais de 30 anos, uma pequena parreira, que, generosa, ao final de cada ano, presenteia nossos funcionários com verdes cachos de uvas frescas.