As origens do Carnaval
e o carnaval paulistano do início do Séc. XX
Vamos combinar que ninguém celebra o Carnaval como os brasileiros. Alegria, diversão, crítica social, política, sátira, descontração e uma catarse que faz os foliões deixarem de lado as mazelas cotidianas e mergulharem em uma celebração de quase uma semana. Uma festa tipicamente brasileira. Só que não.
A origem do Carnaval é de muito antes de nossas terras serem colonizadas e olha, que indo muito lá para trás, cerimônias na antiga Babilônia e na Mesopotâmia, eram, digamos, bem menos inocentes.
Na babilônia as “Sacéias” eram uma festividade em que um prisioneiro ocupava de forma figurativa o lugar do rei. Nesses dias, ele se vestia como o rei, se alimentava nos aposentos reais e, até mesmo, dormia com suas esposas. Legal até. Mas, ao final da Sacéia, ele era chicoteado e morto.
Na Mesopotâmia, durante a comemoração do ano novo, próximo ao equinócio da primavera, o rei ia até o templo para ser surrado em frente à estátua de Marduk, um dos primeiros deuses dos povos mesopotâmicos.
O ritual meio sádico tinha por objetivo mostrar que o rei deveria ser submisso à divindade, por isso ele perdia seus emblemas e era humilhado à frente de todos. Mas, ao final das comemorações, reassumia o trono.
Há quem defenda que a origem do carnaval também pode estar associada aos bacanais ou como também são chamadas, as festas dionisíacas. As orgias que eram dedicadas ao deus do vinho Baco (para romanos) ou Dionísio (para gregos) também está associada a entrega aos prazeres da carne e embriaguez, como ocorre no carnaval.
Há uma característica comum a estas festas da antiguidade: a inversão de valores. O rei plebeu, o prisioneiro rei. Não é assim, até hoje nas festas carnavalescas modernas?
Celebração do Carnaval na Europa
Nos carnavais da era Medieval, aproximadamente no século XI, muitos homens jovens se fantasiavam de mulheres e saíam pelos campos durante a noite.
Para a tradição, eles eram habitantes da fronteira que dividia o mundo dos vivos e dos mortos, por isso eram aceitos pelas casas em que passavam e lá comiam, bebiam e recebiam o amor das mulheres.
Durante o Renascimento nas cidades italianas surgia a commedia dell’arte, um tipo de teatro popular que tinha como principais características o uso de máscaras e muita improvisação, além da incorporação de papéis caricaturados. Nesse período também se tornaram comuns os desfiles, carros decorados eram acompanhados pelas pessoas e canções que eram criadas para essa finalidade.
Estas festas todas apresentavam uma característica em comum. Era um momento de diversão, de subversão, de libertação, um período em que as pessoas podiam se ver livres de restrições e assumir outras identidades.
Já deu para perceber que essas festas tinham tudo para incomodar a Igreja Católica, cujos dogmas preconizam a virtude, a responsabilidade, o rigor moral, enfim, tudo o que essas festas não eram.
Além de serem festas seculares e que derivavam dos culto às divindades, a Igreja achava escandaloso a inversão das posições sociais, pois acreditava que, posteriormente, as pessoas também podiam inverter a relação entre Deus e o diabo.
Como a Igreja Católica foi ganhando poder, durante a Alta Idade Média, o Clero conseguiu influenciar as comemorações “delimitando” o período das festividades.
Dessa forma, o “carnis levale” (retirar a carne, em latim) seria um período em que as pessoas podiam realizar suas festividades e cometer todos os excessos, porque logo em seguida vinha a Quaresma, um período de 40 dias em que as pessoas se purificariam para a celebração da Páscoa.
Entrudo, o precursor do carnaval brasileiro
As folias de Carnaval chegam ao Brasil junto com os portugueses, que trazem para cá uma comemoração um tanto bizarra, chamada Entrudo.
À semelhança do Carnaval, o Entrudo, (do latim intoitum) era um antigo folguedo luso-brasileiro realizado nos três dias que antecedem a entrada da Quaresma, no qual os foliões arremessavam baldes de água, limões de cheiro, ovos, tangerinas, pastelões, luvas cheias de areia, golpeavam-se com vassouras e colheres de pau e se sujavam com farinha. A brincadeira foi proibida a partir de 1854,mas ainda durou até o início do Séc. XX.
Digamos que o Entrudo não era lá uma festa muito civilizada, principalmente para a elite econômica e cultural que começou a se distanciar da festa passando a comemorar este período pré quaresma em bailes mais sofisticados.
Os bailes de máscaras em salões e teatros
É mais ou menos quando a Casa da Boia experimenta o sucesso de suas primeiras décadas de atividade, que o Carnaval paulistano começa a reunir os elementos que, anos depois consagraram a festa das escolas de samba e os desfiles das agremiações.
No festejo paulista, podemos diferenciar, a partir de finais dos Séc. XVIII, os chamados “grande carnaval” e “pequeno carnaval”. O primeiro correspondia ao carnaval elitizado do luxo e do brilho, também conhecido como carnaval veneziano, praticado pela burguesia cafeeira e a elite cultural. O outro era aquele baseado nas tradições lúdico-religiosas portuguesas, negras e indígenas, celebrado nas ruas pelos trabalhadores, ex-escravos e população pobre da capital.
O grande carnaval englobaria os cortejos burgueses, passando pelos bailes de máscaras, indo das ruas aos salões e retornando ao ambiente externo com o desfile das grandes sociedades e o corso.
O pequeno carnaval era representado pelas manifestações de rua da população mais pobre, que tinha na dança e na música os elementos centrais de suas festas, de onde surgiriam os blocos, os cordões, os ranchos e as escolas de samba, que paulatinamente agregariam também elementos do grande carnaval.
O corso pontua a divisão de classes
Uma tradição do carnaval do início do Séc. XX era o corso, realizado na Avenida Paulista.
Durante muitos anos, o Corso da avenida Paulista foi um dos principais eventos do carnaval paulistano e reunia a elite mais rica da cidade. Quando o corso na Avenida surgiu, havia poucos automóveis em São Paulo e só os filhos das famílias mais ricas desfilavam. No início do século passado todos os automóveis tinham o monograma do seu proprietário gravado na porta e eram tão poucos que qualquer um sabia a quem pertenciam.
Mas em poucos anos os automóveis se multiplicaram e o corso na Avenida Paulista cresceu proporcionalmente. Mesmo assim o desfile se mantinha ainda restrito àquilo que na época se chamava “a melhor sociedade” embora o número de participantes tenha aumentado muito não só porque havia mais automóveis circulando nas ruas, mas principalmente porque grupos de rapazes e muitas famílias alugavam veículos para a festa.
Era praticamente impossível obter um taxi em São Paulo naquele período porque todos os veículos eram reservados com muita antecedência para o Carnaval.
Além dos taxis, passaram a ser alugados também caminhões que eram decorados cuidadosamente e recebiam até vinte entusiasmados passageiros, todos usando a mesma fantasia.
As revistas, passado o carnaval, escolhiam o carro mais bonito, o grupo melhor fantasiado, os foliões mais animados. A Cigarra, a revista de maior circulação em São Paulo e que melhor cobria o carnaval, todos os anos dava mais de uma dezena de páginas, às vezes em mais de uma edição com fotos e comentários sobre a festa.
Tudo junto e misturado deu origem à festa de hoje
A formação do carnaval popular paulistano tem como base fundamental as festas de caráter religioso-profano das pequenas cidades interioranas nas quais a população pobre manifestava-se por meio de suas danças e músicas, que acabaram tornando-se parte indissociável dos festejos, como na festa de Bom Jesus de Pirapora.
Os primeiros líderes de grupos carnavalescos paulistanos, em sua maioria provindos do interior do estado, ao frequentarem estas festas, absorviam elementos musicais e coreográficos que seriam manifestados no carnaval popular da cidade.
Assim, a influência dos sambas rurais presentes na festa de Pirapora refletir-se-ia na música dos cordões carnavalescos da capital, que por sua vez influenciariam as futuras escolas de samba, atualmente as principais agremiações carnavalescas de São Paulo.
O desfile dos foliões, as fantasias, o estandarte das agremiações, a influência do corso (não lembram os carros alegóricos?) foram elementos incorporados aos cordões, ou escolas de samba.
O primeiro cordão carnavalesco paulistano foi criado por Dionísio Barbosa em 1914 e chamava-se Cordão da Barra Funda (posteriormente Camisa Verde e Branco). Dionísio morou no Rio de Janeiro, onde teve contato com os ranchos carnavalescos de lá, além das bandas militares, populares no início do século XX.
Assim, Dionísio resolveu criar um grupo carnavalesco em São Paulo. No entanto, o contexto cultural, social e histórico da capital paulista era bem diverso do da capital fluminense e os primeiros cordões carnavalescos paulistanos exibiriam características peculiares.
Visualmente, os cordões se caracterizavam pela presença do Baliza, personagem que executava malabarismos com um bastão e abria caminho para a agremiação carnavalesca passar entre os foliões, além de defender o estandarte do grupo, o próprio estandarte, símbolo maior do cordão, e corte com rei, rainha, príncipe etc.
Os elementos musicais característicos eram a batucada, responsável pela manutenção do ritmo do desfile por meio da execução de instrumentos de percussão e sopro, com destaque para o bumbo, e o chamado choro, grupo responsável pelo acompanhamento melódico e harmônico, com instrumentos de corda, cavaquinho e violão, e também de sopro, como trompete, trombone e saxofone.
O ritmo interpretado pelos cordões era a chamada marcha-sambada, que mesclava elementos dos sambas rurais paulistas e da marcha.
A influência dos cordões foi determinante para as primeiras escolas de samba de São Paulo na mesma medida em que os ranchos influenciaram as escolas cariocas.
Assim, nas primeiras escolas de samba paulistanas, houve a mescla de elementos dos cordões com características musicais e coreográficas do samba carioca, que diferenciavam a escola de samba dos demais agrupamentos carnavalescos.
As primeiras escolas de samba de São Paulo surgiram em meados da década de 1930. A “Primeira de São Paulo” é considerada por alguns como a pioneira, mas a primeira escola a se firmar no carnaval paulistano foi a “Lavapés”, fundada em 1937 por Madrinha Eunice e Chico Pinga, no bairro da Liberdade.
De lá para cá muita coisa mudou, menos a disposição dos foliões para aproveitarem este período de festa e alegria. Bom Carnaval a todos!