Chagas, Ribas, Cruz
a influência da ciência nos negócios da Casa da Boia
No dia 15 de abril de 1909, há exatos 114 anos, uma nota prévia, publicada em periódicos científicos por um cientista mineiro, chamado Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas e depois publicada como um artigo completo, no dia 22 de abril, na revista Brazil Médico, trouxe grande repercussão à comunidade científica. A descoberta da tripanossomíase americana, a popularmente conhecida doença de Chagas.
Pela primeira vez, um cientista descrevia o ciclo completo de uma doença infecciosa: o patógeno, o vetor, os hospedeiros, as manifestações clínicas e a epidemiologia.
Chagas descobriu o protozoário Trypanosoma cruzi (cujo nome foi uma homenagem ao seu amigo Oswaldo Cruz) e a tripanossomíase americana, conhecida como doença de Chagas.
A descoberta do cientista brasileiro causou grande euforia no mundo científico. Seu artigo foi publicado nas principais revistas científicas da Europa e representou uma enorme contribuição para os estudos das doenças tropicais, cujo combate teve influência no modelo de negócios da Casa da Boia no início do Séc. XX.
Contexto histórico
Vale lembrar que medicina e crendices populares andam de mãos dadas desde o início dos tempos. A sabedoria dos Xamãs da Amazônia tem tanta relevância quanto a dos aborígenes australianos ou os curandeiros (no melhor sentido da palavra) africanos, ou dos pesquisadores acadêmicos.
Por outro lado, as crenças enraizadas nas sociedades pré-industriais, igualmente representavam grande força e o embate entre o científico e a crendice sem base alguma era maior quando a ciência não conseguia provar e difundir as suas teorias.
O surgimento das comunicações, dos modos de impressão em larga escala, o desenvolvimento de aparelhos que permitiam enxergar um mundo invisível e teórico (microscópios, telescópios), a evolução da física, da química, da engenharia que permitia a construção de novos aparelhos de diagnóstico, para fabricação de medicamentos, deram um impulso enorme à prática da medicina nos finais do Séc. XIX e início do Séc XX.
Foi o desenvolvimento da ciência por trás das técnicas construtivas que permitiu o crescimento das cidades com mais qualidade de vida, mais conforto (luz elétrica e água encanada) e mais saúde pública, com as descobertas de cientistas como Chagas.
No Brasil rural do Séc. XIX as doenças provocadas por vetores como insetos eram comuns. Quando o adensamento das cidades começou a ocorrer, começaram também os surtos destas doenças nas áreas urbanas e o papel da ciência e das políticas públicas se mostraram fundamentais para contornar esses surtos.
A febre amarela chega devastadora
Na virada de 1849 para 1850, a tranquilidade que o Brasil vivia sob o reinado de dom Pedro II foi abalada pela chegada de um vírus devastador. Velho conhecido no exterior, mas novidade no país, o vírus da febre amarela pegou o governo imperial de surpresa e avançou sem piedade sobre as grandes cidades do litoral, deixando um rastro de pânico e morte.
Apenas no Rio de Janeiro, capital de 200 mil habitantes, perto de 4 mil pessoas morreram em poucos meses na epidemia de 1849-1850. Transportando essa proporção para a atualidade, quando a cidade se aproxima dos 7 milhões de habitantes, é como se a doença hoje tirasse a vida de 130 mil cariocas.
Foi por causa dessa grande epidemia que o Brasil mudou um antigo costume. Em 1850, uma lei proibiu as sepulturas dentro e ao redor das igrejas e exigiu que os novos cemitérios fossem abertos longe do centro das cidades. A preocupação era evitar a infecção dos fiéis e dos vizinhos das igrejas.
O vírus chegou primeiro a Salvador, em setembro de 1849, a bordo de um navio de bandeira americana que fizera escala em ilhas infectadas do Caribe.
A partir de Salvador, a doença se espalhou pela costa brasileira. Na capital do Império, os primeiros registros se deram em dezembro. Com variável intensidade, a febre amarela provocaria mortes no Brasil praticamente a cada verão pelos 60 anos seguintes.
No século 19, de acordo com Jaime Benchimol, historiador da Casa de Oswaldo Cruz (instituição ligada à Fundação Oswaldo Cruz), os médicos e cientistas no Brasil e no mundo se dividiam entre dois grupos na forma de encarar a febre amarela: os contagionistas, que acreditavam ser ela uma doença contagiosa, transmitida diretamente de uma pessoa infectada para uma saudável; e os anticontagionistas, defensores da ideia de que o que fazia as pessoas adoecerem eram a insalubridade e o ar venenoso das cidades.
Este embate entre as correntes de pensamento influenciou as políticas de combate à doença. Ao mesmo tempo em que eram impostas quarentenas rigorosas aos navios que chegavam aos portos (Rio de Janeiro e Santos), também eram criadas políticas públicas de melhoria do saneamento das cidades.
Deve-se ao médico cubano Carlos Juan Finlay de Barres, a percepção de que a febre amarela é transmitida pelo Aedes Aegypti. Conclusão a que ele chegou em 1881, embora a sua teoria só ganhasse força, graças aos estudos de outro médico, o norte americano Walter Reed, que confirmou a teoria de Finlay em 1901.
Assim, a situação no Brasil só mudaria no início do século 20, já na República, quando o médico Oswaldo Cruz, nomeado pelo governo para comandar a Diretoria-Geral de Saúde Pública, se dedicou a combater o mosquito Aedes aegypti.
Em São Paulo, em 1903, o médico sanitarista Emílio Ribas repetiu as experiências de Cuba, deixando-se picar, junto de Adolfo Lutz, Oscar Moreira e outros voluntários, por mosquitos infectados pelo sangue de um portador da doença.
A intenção do grupo era de provar que o verdadeiro transmissor era o Stegomyia fasciata, hoje chamado de Aedes aegypti. No mesmo ano, fez a experiência de entrar em contato com os dejetos dos doentes, de deitar-se ao lado deles para mostrar, mais uma vez, que o contágio não era por toque ou contato, no Hospital de Isolamento (hoje nomeado Instituto de Infectologia Emílio Ribas).
Ribas, criador do Instituto Butantan com o também infectologista Vital Brasil foi decisivo para o combate das doenças infecto-contagiosas, como diretor-geral do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo, cargo que exerceu de 1896 a 1915.
O Impacto nos negócios da Casa da Boia
Fundada no final do Século XIX, no ano de 1898, a Casa da Boia surgiu como uma pequena fundição que produzia, principalmente, artefatos decorativos em cobre. Lustres, arandelas, gradis de portões, objetos para o lar.
Mas, o contexto histórico do combate às doenças junto com o crescimento da cidade de São Paulo e com a percepção de negócios aguçada do fundador da empresa, Rizkallah Jorge Tahan, foram decisivos para seu crescimento.
Percebendo o enorme potencial de negócios que todo este contexto representava, a Casa da Boia passou a ampliar sua linha de produtos produzidos. Incorporava à produção, toda uma nova gama de produtos para hidráulica, como canos, tubos, conexões, sifões e a introdução da boia de caixa d’água, que daria origem ao nome da empresa.
Com esta ampliação, a pequena fundição passava a comercializar não apenas com os clientes residenciais, que ainda eram contemplados, mas também com o poder público, por meio dos Departamentos de Água e Esgotos da capital, São Paulo Gas Company, com a São Paulo Light and Tramway e com grandes escritórios de engenharia e construção, como o Ernesto de Castro, associado a Ramos de Azevedo.
Essa expansão das possibilidades de negócios fez com que a Rizkallah Jorge e Cia, posteriormente Casa da Boia, vivenciasse um período de prosperidade nos finais do Séc. XIX e início do Séc. XX, que colocaram a empresa como uma das mais importantes da São Paulo daqueles tempos.