História e presente das salas
da “Cinelância Paulistana”
No próximo mês de setembro está prevista a inauguração de uma nova casa de espetáculos, em Copacabana, Rio de Janeiro. O Roxy Dinner Show abre suas portas em uma esquina icônica da capital carioca, onde funcionou o Cine Roxy, inaugurado em 1938 e que fechou suas portas em 2021.
Assim como no Rio, São Paulo teve a sua “Cinelândia” no centro da capital na primeira metade do séc. XX.
Conheça a história e o destino destes cinemas que marcaram época.
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A invenção do cinema, assim como a maior parte das invenções do Séc XIX e início do Séc. XX não foi uma descoberta do acaso, ao contrário, foi um processo de aperfeiçoamento e junção de várias tecnologias. Coube, entretanto, aos irmãos franceses Auguste e Louis Lumière o pioneirismo da tecnologia do que conhecemos como “cinema comercial”. Eles realizaram a primeira exibição pública cinematográfica, no ano de 1895.
O aparelho desenvolvido por eles, filhos de um fotógrafo e proprietário de uma indústria de filmes e papéis fotográficos, é o ancestral da filmadora. Era movido à manivela e utilizava negativos perfurados. Como era leve, o instrumento facilitava filmagens externas e, ao longo dos anos, os irmãos usaram a câmera para fazer mais de mil curtas-metragens, a maioria dos quais retratava cenas da vida cotidiana.
A primeira exibição de um filme produzido pela dupla, “La Sortie de l’unsine Lumière à Lyon” (A saída da Fábrica Lumière em Lyon) aconteceu no dia 22 de março de 1895 no Grand Café Paris para uma pequena plateia, mas foi um grande passo para um novo rumo na indústria do entretenimento. Os primeiros filmes representavam cenas cotidianas e cativavam cada vez mais públicos fascinados com a tecnologia “moderna”.
Pouco mais de um ano depois da apresentação pioneira dos Lumière, na França, o Brasil registra sua primeira exibição cinematográfica, acontecida na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, em 8 de julho de 1896, que exibiu pequenos filmes que traziam filmagens de cidades europeias.
A título de curiosidade, é tido que as primeiras filmagens em terras brasileiras teriam sido feitas por Vittorio di Maio, Afonso Segreto e José Roberto Cunha Salles. Considera-se que o primeiro filme gravado no Brasil foi “Chegada do Trem em Petrópolis”, de 1897, que supostamente mostra a chegada de um trem com o presidente Prudente de Morais a uma estação, em Petrópolis, embora alguns estudiosos questionam a legitimidade dessa filmagem, alegando que ela pode não ter sido gravada aqui, mas na Europa.
O cinema chega a São Paulo
O Cine Bijou-Theatre foi a primeira sala de cinema paulistana, aberta ao público em 16 de novembro de 1907. Alguns teatros e salões já faziam exibições de filmes, mas nenhum deles se dedicava exclusivamente à projeção cinematográfica. O Bijou ficava na rua São João (atual Avenida São João), em terreno arrendado da Companhia Antarctica Paulista e tinha capacidade para quatrocentas pessoas.
Esta era a chamada região do “Centro Novo” (já que o centro velho era a região do Patéo do Colégio, onde São Paulo foi fundada).
Nos anos que se seguiram, com a rápida popularização do cinema, o chamado Centro Novo de São Paulo concentrou grande número de salas de exibição entre as décadas de 1930 e 1950. A maioria delas ficava nas avenidas Ipiranga e São João, principalmente nas proximidades do Largo do Paissandu e da Praça Júlio Mesquita.
Além das salas de exibição, a presença de uma série de estabelecimentos conferia à região agitada vida cultural. Na Avenida São João e transversais, ficavam vários salões de dança. Na Avenida Ipiranga e imediações, espalhavam-se cabarés e boates.
No Centro Novo também estavam o Theatro Municipal e a Biblioteca Mário de Andrade, o Colégio Caetano de Campos, o Museu de Arte de São Paulo (MASP), então na rua 7 de Abril, teatros, bares, restaurantes, confeitarias, leiterias, livrarias, hotéis, estúdios das principais emissoras de rádio da cidade e redações de jornais.
A região chegou a ter nada menos do que 30 cinemas em funcionamento simultâneo na primeira metade do Séc. XX, fato que tornou a região conhecida como a Cinelândia Paulista.
A indústria cinematográfica crescera e se consolidara. Era a época das grandes produções de Hollywood e as salas de cinema precisavam estar preparadas para receber um enorme público.
Os espaços que surgiam eram elegantes e bem cuidados. Um dos primeiros cinemas construídos em São Paulo especialmente com essa função foi o Cine Ufa Palace, depois rebatizado de Cine Art Palácio, na Avenida São João, em frente ao Largo do Paissandu.
Inaugurado em 1936, com capacidade para nada menos do que 3.119 espectadores, ocupava o térreo de um edifício de seis andares, de linhas modernistas e de autoria do renomado arquiteto Rino Levi. No local funcionava também o Plaza Hotel.
Rino Levi projetou também o Cine Ipiranga, na avenida de mesmo nome, inaugurado em 1943. Assim como o Art Palácio, o Ipiranga ficava no térreo de um edifício de 22 andares, utilizado pelo Hotel Excelsior.
Outro grande cinema do centro era o Cine Marrocos, na Rua Conselheiro Crispiniano, no térreo de um edifício de escritórios. Projetado em 1951 pelos engenheiros João Bernardes Ribeiro e Nelson Scuracchio, o Marrocos tinha sua decoração interna inspirada nas histórias de As Mil e Uma Noites. A sala foi considerada, na época de sua construção, a sala mais imponente e luxuosa do Brasil.
Auge e decadência da Cinelândia Paulistana
Os cinemas da região das avenidas São João e Ipiranga eram empreendimentos luxuosos e gigantescos, os quais reuniam a alta sociedade e a classe trabalhadora, que tinham nos ingressos relativamente acessíveis, uma forma de acessar o lazer e desfrutar uma experiência sofisticada.
As famílias usavam suas melhores roupas para frequentar as requintadas salas de exibição. Os jovens aproveitavam os halls de entrada das salas para namorar, tudo com pompa e circunstância. Ir ao cinemas do centro não era uma atividade corriqueira (para isso existiam os cinemas de bairro), mas sim um acontecimento especial.
Mas o centro da cidade, incluindo a Avenida São João, começou a dar os primeiros sinais de deterioração ainda no fim dos anos 1950. No processo vivo da dinâmica da cidade, a Avenida Paulista começava a ver seus casarões caírem ao chão e em seu lugar a construção dos primeiros edifícios e conjuntos comerciais, que atraíram os escritórios, consultórios médicos, lojas e cinemas, antes situados no centro.
Depois da construção do Elevado Presidente Costa e Silva (atual Presidente João Goulart), o “Minhocão”, em 1970, a degradação urbanística da Avenida São João se acentuou rapidamente e mesmo o trecho não encoberto pela via elevada foi afetado. Aos poucos, os cinemas perderam os antigos frequentadores, também atraídos pelas novas salas inauguradas na Avenida Paulista.
Para não fechar as portas em definitivo, muitos cinemas passaram a exibir filmes pornográficos com ingressos a preços reduzidos. Outros encerraram suas atividades e destinaram as antigas salas a usos diversos, como estacionamentos, igrejas e bingos.
Ao final dos anos 80 início dos anos 90, a cinelândia paulistana se tornara um espaço decadente.
Nem o tombamento salvou as grandes salas
Em 8 de dezembro de 1992, Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – CONPRESP, editou a Resolução nº 37/92 que tombou centenas de imóveis na área envoltória do Vale do Anhangabaú.
A resolução pela qual, aliás, o imóvel da Casa da Boia foi tombado, incluiu sete salas de cinemas da região.
Mas, se a Casa da Boia representa uma exceção quando se fala em preservação de patrimônio histórico, única e exclusivamente porque a família Rizkallah mantém o imóvel, por suas custas, sem qualquer apoio do poder público, o mesmo não aconteceu com boa parte dos cinemas tombados naquela resolução.
Conheça cada um deles:
Cine Paissandu
Localizado no número 62 do Largo do Paissandu, tinha uma fachada imponente, com colunas altas e uma pequena e charmosa escadaria. Revestido em mármore, era um dos cinemas de maior capacidade de São Paulo (2.150 cadeiras na sala). A inauguração foi em 19 de dezembro de 1957 e já deu fama ao painel de 15 metros que exibia imagens de danças brasileiras. A partir de 1973, o Paissandu se dividiu em duas salas.
A crise financeira chegou forte e, em 1993, parte do cinema se transformou em um bingo. A proibição do jogo foi o golpe definitivo. Hoje, a área está completamente desativada, restando apenas um painel rasgado com a inscrição “bilheteria”. O prédio é ocupado hoje por salas comerciais.
Cine Art-Palacio
Inaugurado como Cine UFA Palacio (sigla da empresa alemã Universum Film AG, que custeou sua construção) em 13 de novembro de 1936, o cinema foi projetado pelo arquiteto brasileiro Rino Levi.
O projeto era considerado bastante moderno para a época por já se preocupar com questões como a circulação de ar e a acústica. A sala erguida no número 419 da Avenida São João tinha capacidade para cerca de 3 mil pessoas.
O nome Art-Palacio foi adotado em 1939. Algum tempo depois, as requintadas produções europeias deram lugar a filmes mais populares. Um dos artistas que consagraram essa fase foi o comediante Amacio Mazzaroppi, que fazia os lançamentos de suas películas no Art-Palacio, sempre no dia 25 de janeiro, data de aniversário de São Paulo.
A decadência da Cinelândia atingiu em cheio o local: a partir da década de 1980, perdeu de vez todo o charme ao exibir apenas filmes pornográficos. O fim definitivo veio em 2012.
O hotel que funcionava junto do cinema ainda está ali mas a sala de cinema está abandonada.
Cine Jussara
Foi um dos últimos a preservar a atividade de cinema de filmes pornográficos. Cartazes na porta anunciavam que as películas, proibidas para menores de 18 anos, tem “histórias imperdíveis”.
O cinema, erguido na Rua Dom José, 306, foi inaugurado em 1951 e fica quase na esquina do Olido. Seu primeiro filme foi o francês “Conflitos de Amor”, que exibiu com exclusividade por seis meses. Construído na antiga sede do Esporte Clube Pinheiros, o Jussara foi a casa da Nouvelle vague, movimento cultural do cinema francês nos anos 1960.
O declínio começou ainda nos anos 1960 e a casa passou a se chamar Bruni. Em 1976, adotou o nome de Cine Dom José, com o qual se transformou em um dos mais famosos cinemas pornôs da região.
O imóvel atualmente exibe uma faixa de “estamos em reforma e retornarnaremos em breve”.
Cine Ipiranga
Outro dos cinemas que dividiu espaço com um hotel (no caso, o Excelsior, que ainda permanece em atividade com seus 25 andares), o cinema foi construído na Avenida Ipiranga, 780. Mais uma obra do arquiteto Rino Levi.
Ele foi inaugurado em 1943 e se notabilizou pela iluminação bem cuidada, pela acústica acima dos padrões da época e pela arquitetura clássica.
Apesar da decadência acentuada a partir da década de 1980, o Ipiranga resistiu até fevereiro de 2005. Hoje, a área ocupada por suas salas está praticamente desativada, servindo apenas como estacionamento do Excelsior.
Cine Marrocos
Localizado em um importante centro cultural da cidade (na Rua Conselheiro Crispiniano, 344, entre a Praça das Artes e a parte de trás do Theatro Municipal), o Cine Marrocos foi um dos mais famosos da região da Cinelândia.
Localizado em um edifício homônimo de 12 andares, tinha uma fachada adornada com colunas inspiradas na cultura árabe. Esse era o tom também de uma sala com capacidade para 1.500 pessoas, adornada com um chafariz e um requintado bar.
O Cine Marrocos foi inaugurado em 1951 como “o mais luxuoso cinema da América do Sul” e sediou o I Festival Internacional de Cinema do Brasil três anos depois. Resistiu até 1992 e, depois de desativado, foi ocupado e funcionou como moradia precária para nada menos do que cerca de 2.000 brasileiros sem-teto, imigrantes latino-americanos e refugiados africanos.
Em 2011, a Prefeitura começou a buscar a reintegração de posse do local, o que gerou conflitos entre os invasores e a polícia.
Em 2016, o edifício enfim voltou para a Prefeitura, que faz agora reformas no local, que abrigará a Secretaria Municipal de Educação.
O Marrocos foi tema do documentário “Cine Marrocos”, de Ricardo Calil (“Uma Noite em 67”), que mistura ficção e realidade ao retratar os moradores que lá se instalaram.
Cine Metrópole
É o menos famoso dos prédios tombados pelo Condephaat e também o mais afastado: fica em uma pequena galeria na Avenida São Luís, 187. O Metrópole foi inaugurado em 25 de janeiro de 1964 como parte das comemorações pelos 410 anos da cidade de São Paulo. À época, a Cinelândia já não vivia o seu período mais glorioso, mas o cinema ainda atraía as classes mais altas.
Com a derrocada definitiva a partir da década de 1980, os proprietários optaram pelos filmes pornográficos a partir de 1993. Não deu certo e cinco anos depois o Metrópole fechou as portas em definitivo. Hoje, só a pequena galeria erguida junto do cinema continua funcionando, ainda assim, com poucas lojas que ainda resistem no local.
A exceção, o Cine Marabá
Localizado quase exatamente em frente ao Ipiranga, no número 757 da Avenida Ipiranga.
Destoa dos demais por ser o único que ainda exibe filmes do circuito comercial. Na verdade, ele também enfrentou a decadência dos seus companheiros de Cinelândia, mas conseguiu ressurgir. Atualmente faz parte do grupo PlayArte e encontra-se em excelente estado de conservação, exibindo filmes do circuito comercial.
Foi inaugurado em 1945 pelo empresário Paulo Sá Pinto como forma de tentar diminuir o monopólio cinematográfico do espanhol Francisco Serrador, dono do Art-Palacio e do Ipiranga, entre outros.
A sala original tinha 1.655 lugares e fez bastante sucesso, mas entrou em decadência no mesmo período da maior parte dos vizinhos. Nos anos 1980, fechou as portas e só viu a sorte mudar em 1996, quando foi comprado pela distribuidora PlayArte.
A companhia promoveu uma grande reforma no local e fez a reabertura em 2007. Agora com cinco salas. O Hotel Marabá esteve o tempo todo ali, nos andares acima das salas que exibem os filmes.
O Cine Olido
Outro espaço que teve um final menos decadente no Centro foi o Cine Olido. Inaugurado em 13 de dezembro de 1957, com o filme Tarde Demais para Esquecer, foi o primeiro cinema paulistano a funcionar dentro de uma galeria comercial.
Na década de 1980, a sala de cinema foi dividida em três menores. Encerrou suas atividades comerciais em 2001, mas foi restaurado pela Prefeitura Municipal de São Paulo e reaberto em 2004 com parte do complexo cultural Galeria Olido.
Além do cinema, o local conta com duas salas dedicadas à dança, uma sala de show, espaço expositivo, ponto de leitura, Fab Lab, e com o Centro de Memória do Circo.
Salas e lembranças
Neste post fizemos apenas um recorte dos mais antigos cinemas da região central, e, claro, que outros acabaram por ficar de fora. Cinemas como o Metro, o Cinerama, Ritz, Comodoro, Cinespacial, Regina, Ouro Preto, Copan, Windsor, República e Bijou, dentre tantos outros, representaram uma época de ouro dos cinemas de rua na capital e certamente trazem lembranças carinhosas aos paulistanos que frequentaram estes locais.
Muitos deles ainda estão ali, com suas memórias e lembranças, quem sabe aguardando uma virada na história e no urbanismo da capital que possa trazer de volta um espaço tão rico e importante no centro paulistano.
https://capital.sp.gov.br/web/cultura/w/patrimonio_historico/ladeira_memoria/8381
https://capital.sp.gov.br/web/cultura/galeria_olido/espacos/
https://www.spcuriosos.com.br/antiguidades/as-sete-salas-tombadas-da-antiga-cinelandia-paulista/