Light, Gaensly e a preservação iconográfica
de uma São Paulo em crescimento
Em um momento de grande transição para a cidade de São Paulo, a chegada de uma companhia canadense para gerir a geração e distribuição de energia na capital, assim como o transporte sobre trilhos, quase sem querer garantiu a preservação de um acervo iconográfico da maior importância. Conheça a história do encontro da Light com o fotógrafo Guilherme Gaensly e legado deixado por essa parceria para a história paulista.
Tempo de leitura: aproximadamente 10 minutos
A Rizkallah Jorge e Cia nasce em 1898 pela vontade do artesão Rizkallah Jorge, que, com sua habilidade de trabalhar o cobre, inicia uma produção variada de objetos, muitos dos quais voltados ao espaço do lar.
Além de hábil artesão, Rizkallah era um empresário de visão e não demorou para ampliar a sua produção para comercializar com as empresas públicas ou concessionárias de serviços públicos, como o “Departamento de Águas e Esgotos”, a “São Paulo Gas Company” e a empresa de origem canadense para gerir o fornecimento de energia elétrica e o transporte sobre trilhos para São Paulo a “São Paulo Tramway Light and Power Company”, fundada em 1899.
A Rizkallah Jorge e Cia, se tornou Rizkallah Jorge e Filhos e depois a Casa da Boia, nome que recebeu de seus clientes justamente por ter introduzido no comércio a boia de caixa d’água.
E assim, comercializando tubos, caixas d´água, boias e uma centena de produtos hidráulicos, a Casa da Boia ajudou a cidade de São Paulo a melhorar as condições de saneamento básico no final do Séc. XIX e início do Séc. XX.
Mas, não menos importante do que a linha de hidráulica, era também a linha de cobre que a Casa da Boia fabricava para atender a demanda crescente por instalações elétricas.
Nos livros comerciais de nossa empresa na década de 1920, há diversos registros de transações entre a Casa da Boia e a “Light”, mostrando que nossa empresa foi parte importante também deste processo de modernização de uma cidade que usava, basicamente, a iluminação a gás, para uma nova matriz representada pela energia elétrica.
E se os caminhos da Casa da Boia se encontraram com o da Light, outro encontro importante se deu desde que a empresa iniciou suas operações aqui em São Paulo, o da Light com o fotógrafo Guilherme Gaensly. Talvez sem ter a exata noção do que este encontro significaria para a memória iconográfica da cidade.
De um trabalho burocrático a um acervo fundamental
Guilherme Gaensly, nascido Wilhelm Gänsli (Wellhausen, Suíça) em 1 de setembro de 1843, se mudou para o Brasil aos cinco anos de idade, quando sua família foi morar em Salvador, Bahia.
Na juventude, se estabeleceu na capital baiana como fotógrafo no fim da década de 1860 e lá permaneceu até os primeiros anos dos anos 1890. Destacou-se como retratista e como fotógrafo de paisagens urbanas e rurais. Em 1882, O alemão Rodolpho Lindemann tornou-se seu sócio e, em 1894, a próspera empresa Gaensly & Lindemann abriu uma filial em São Paulo, onde Gaensly veio morar.
É interessante ressaltar que Gaensly começou a trabalhar em São Paulo quando já tinha mais de 50 anos e um estúdio consolidado na Bahia.
Mas na época do início de seu interesse pela cidade paulistana, o local era visto como um campo promissor para a atividade fotográfica devido ao seu crescimento urbano, comercial e populacional provindos da economia cafeeira.
Pouco tempo depois da inauguração de seu estúdio paulistano, em fevereiro de 1894, na Rua 15 de Novembro, nº 28, o estabelecimento já era visto como o mais importante da cidade. Enquanto isso, em Salvador, a filial passou a se chamar Photographia Cosmopolita.
O historiador e também fotógrafo Boris Kossoy comenta que: “As imagens de Gaensly foram fartamente utilizadas pelas primeiras publicações ilustradas, oficiais ou não, num contexto promocional, interessadas em divulgar a imagem do Estado de São Paulo no plano internacional. Gaensly, de sua parte, veicularia amplamente sua produção através dos cartões postais…Se, por um lado, enquanto fotógrafo proprietário de um estabelecimento comercial as vistas urbanas e rurais se incluíam em sua atividade profissional constituindo-se no seu meio de vida, por outro, ele colaborou definitivamente para a construção da imagem oficial da cidade: aquela idealizada pelas elites e pelo Estado, a imagem de uma cidade que se “apresentava” moderna através de estilos “neoclássicos”.
A partir de 1898, Gaensly passa a fotografar a serviço da Escola Politécnica, da Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas e da Comissão Geográfica e Geológica. Edita nesta época centenas de postais de São Paulo e obtém sucesso comercial nos anos seguintes.
Sua fama e competência técnica e artística fez com que ao iniciar as suas operações no Brasil, em São Paulo, a Light contratasse Gaensly para ser o fotógrafo oficial da companhia.
Desta forma, a partir de 1899, Guilherme Gaensly passa a produzir uma vasto conteúdo de imagens associadas à atuação da empresa em São Paulo.
A parceria entre Gaensly e a Light durou nada menos do que 26 anos e o fotógrafo produziu para a empresa até o ano de 1925.
Segundo a enciclopédia Itaú Cultural, Gaensly não tinha, ao contrário da geração anterior de fotógrafos do Séc. XIX, uma educação artística prévia. Livre dos rígidos esquemas de representação da tradição da pintura acadêmica, Gaensly aproxima-se de elementos desprezados por outros fotógrafos e pela maioria dos pintores brasileiros do século XIX. Seu olhar volta-se para as vistas urbanas, criando uma alternativa para as visões pitorescas e sublimes que imperam na fotografia e na pintura de paisagem da época.
Ele observa os ambientes de um ponto de vista próximo, apresentando uma novidade em relação a outros artistas e fotógrafos que, até o século XIX, optam pela distância da paisagem representada. Entre vultos de pessoas que se movimentam durante a tomada da imagem e as que permanecem paradas, nitidamente representadas, Gaensly transmite a visão do cotidiano da cidade.
Esse olhar é justamente reforçado pela aproximação do fotógrafo com as obras de geração de energia, infraestrutura e transportes na cidade promovidas pela Light, responsável pelas maiores mudanças nas relações sociais e urbanas em São Paulo no início do século XX.
Havia, ainda, outra particularidade no trabalho do fotógrafo que contribuiu para o legado de imagens da capital paulista de então. Ele não abandonou, ao longo de sua produção, os pesados equipamentos que utilizavam as chapas de vidro como material fotossensível.
A técnica de negativos de vidro sucedeu a daguerreotipia, inventada pelo cenógrafo e pintor francês Louis-Jacques Mandè Daguerre (1787-1851). Anunciada em 1839, consistia em uma chapa de cobre coberta com uma camada de prata polida; uma mistura de mercúrio e prata formava as áreas claras e a prata as escuras. Os primeiros negativos de vidro, de 1848, usavam albumina, uma proteína da clara de ovo, para fazer os sais de prata aderirem ao vidro. A foto exigia uma exposição de 5 a 15 minutos.
Gaensly produzia suas fotos em chapas de vidro nos formatos 18 × 23 e 24 × 30 centímetros o que garantia uma grande qualidade às imagens.
Um legado que só chegou aos nossos tempos graças à preservação
Muita gente se admira quando sabe que a Casa da Boia, no curso dos seus 126 anos de existência, conseguiu preservar um vasto acervo documental e também arquitetônico, a medida que preserva a achatada e boa parte de seu sobrado-sede assim como o era na data de sua inauguração, em 1909.
Isso se deve muito ao fato da empresa ter permanecido sempre com os descendentes do fundador e por meio da atuação de seu neto, Mario Rizkallah, guardião dos mais de 5.000 itens já catalogados pelos historiadores Renata Geraissati e Diógenes Sousa.
Na parte arquitetônica, Adriana Rizkallah, responsável não apenas pela área cultural, como pela preservação do patrimônio histórico, mantém permanente atenção aos detalhes que mantém a Casa da Boia como um exemplo único de mentalidade preservacionista na degradada rua Florêncio de Abreu.
Assim como na Casa da Boia, a obra de Gaensly, principalmente a produzida entre os anos de 1899 e 1925, período em que trabalhou para a Light, só foi preservada porque a empresa, e a fundação que a sucedeu, compreenderam a grandiosidade do registro histórico.
A Light preservou o acervo com mais de cem mil registros fotográficos produzidos de 1899 até a década de 1970, quando terminou a concessão pública dos serviços de energia.
Em 1979 a Eletrobrás assumiu o controle acionário da Light em 1979 e em 1981 o governo do estado de São Paulo adquiriu a Light paulista e criou a sua própria empresa de energia, com o nome de Eletropaulo, (que foi privatizada na década de 1990).
Nesse curso, a guarda do acervo fotográfico ficou instalada no edifício Alexandre Mackenzie, o atual Shopping Light, na extremidade do Viaduto do Chá.
Na época das privatizações das empresas do setor elétrico brasileiro, segunda metade dos anos 1990, o governo estadual paulista optou por criar uma instituição independente para preservar a memória e o patrimônio do gás e da eletricidade no Estado. Nasceu assim a Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo, entidade privada e sem fins lucrativos, responsável pela guarda de mais de 1.600 metros lineares de documentos técnicos e gerenciais, 260 mil documentos fotográficos, 4.050 objetos museológicos, livros de documentos cartográficos, audiovisuais e sonoros, reunidos a partir de meados do século XIX, dentre eles as imagens de Gaensly.
Outra parte da obra do fotógrafo está custodiada no Instituto Moreria Sales, e uma parte menor, pertence ao acervo do Museu da Cidade de São Paulo.
Por fim, outra parte significativa da obra de Guilherme Gaensly faz parte do acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.
Dois fotógrafos, dois momentos, duas visões
A memória iconográfica da cidade de São Paulo ao final do Séc. XIX e início do XX foi garantida não apenas pela atuação de Gaensly, mas também por outro fotógrafo, Militão Augusto de Azevedo, que teve igualmente uma importância fundamental no registro das transformações da cidade, mas, décadas antes de Gaensly se estabelecer em São Paulo.
Uma das obras mais conhecidas de Militão Augusto de Azevedo, é o “Álbum Comparativo de Vistas da Cidade de São Paulo (1862-1887)”. O nome é autoexplicativo, e a publicação reúne as fotografias captadas pelo artista nos mesmos pontos da então provinciana São Paulo, com uma diferença de 25 anos, inclusive registrando imagens da “Ladeira da Constituição”, a atual rua Florêncio de Abreu. Mas a abordagem do trabalho de Militão fica para uma próxima postagem.
Por hora, uma pequena amostra do trabalho de Guilherme Gaensly: