O culto ecumênico que simbolizou
o início da redemocratização brasileira
Há 48 anos, em uma sexta-feira, 24 de outubro de 1975. Militares do Exército entram na sede da TV Cultura de São Paulo para intimar um jornalista a comparecer às dependências da instituição (Exército) para prestar depoimentos.
O então diretor de jornalismo da emissora, Vladimir Herzog, combina de, no dia seguinte, 25 de outubro, ir até a sede do Departamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna, mais conhecido como Doi-Codi, para prestar o depoimento sobre as ligações que ele mantinha com o Partido Comunista Brasileiro.
Sábado, 25 de outubro de 1975. Herzog se dirige espontaneamente à rua Tutóia, 921, na Vila Mariana, sede do Doi-Codi, possivelmente imaginando que, cumprida a burocracia, regressaria aos seus afazeres. Não regressou. O depoimento tornou-se uma sessão de tortura, durante a qual Vlado, como era também conhecido, foi brutalmente assassinado.
Dado a figura pública de Herzog, os militares logo se apressaram a divulgar a versão de que Herzog havia se suicidado, nas dependências do Doi-Codi. Detalhe. Teria se enforcado, com o próprio cinto que ele teria amarrado a uma janela menor do que sua própria altura.
Uma imagem da suposta cena do suicídio fora amplamente divulgada e mostrava Herzog ajoelhado, enforcado.
A repercussão do crime
Lógico que a sociedade não engoliu a história, mas vivíamos os tempos da ditadura militar. Qualquer manifestação individual ou mesmo coletiva contrária aos mandatários, representava um risco. Mas, felizmente, três líderes religiosos foram protagonistas daquele momento de resistência, assumindo um protagonismo que aumentou a pressão da sociedade sobre o regime.
Vladimir Herzog era judeu e segundo a tradição judaica suicidas não podem ser sepultados juntos de pessoas que morreram de causas naturais ou foram assassinados. O Rabino Henry Sobel, que conduziu a cerimônia de sepultamento de Herzog, fez o sepultamento na área não reservada aos suicidas. Uma atitude que dizia de maneira inequívoca: “Vladimir Herzog foi assassinado”.
Diante da repercussão do caso, o cardeal-arcebispo de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns, oferece a Catedral da Sé, para um ato ecumênico em memória do jornalista, o que é aceito por Sobel. Junta-se aos representantes da Igreja Católica e da Confederação Israelita Paulista, o reverendo Jaime Nelson Wright, pastor presbiteriano, voz ativa contra a ditadura.
A despeito das ameaças sofridas, os três decidem levar adiante a manifestação, marcada para o dia 31 de outubro de 1975.
Naquela manhã as principais avenidas da cidade foram tomadas por forças do Exército, que dificultavam a passagem de veículos e mesmo pessoas em direção ao centro da cidade.
A estratégia das pessoas era chegar à Catedral da Sé em pequenos grupos, evitando manifestações no percurso, que pudessem servir de pretexto para uma ação dos militares.
Foi assim que cerca de 8.000 pessoas, aos poucos, desafiando a ditadura, foram chegando à Praça da Sé.
Dom Paulo Evaristo Arns, declarou em entrevistas, posteriores, que 500 policiais estavam nas proximidades da Catedral e que um de seus temores era justamente o estopim de um movimento de repressão aos manifestantes.
A despeito da possibilidade de uma repressão, o ato transcorreu sem incidentes.
A celebração ecumênica em torno da morte de Herzog é considerada uma das primeiras e certamente a maior manifestação em massa contra a ditadura, desde que fora instaurada, a partir do golpe de 1964.
Já no mesmo dia 31 de outubro, data da celebração, o Comando do Segundo Exército emite ordens para que sejam determinadas as circunstancias do suicídio de Vladimir Herzog. No dia seguinte, foi aberto um Inquérito Policial Militar, que durou até março de 1976, concluindo que “nenhum delito havia ocorrido por parte do DOI-CODI”. A investigação é arquivada apesar do fato de que o médico que supostamente havia realizado a autópsia de Herzog testemunhou nunca ter visto o corpo do jornalista.
A partir da celebração na Praça da Sé, o regime passou a ser mais fortemente questionado, e a pressão da sociedade foi desencadeando os grandes movimentos que culminaram no “Diretas Já”.
No ano de 2012, o Brasil instituiu a CNV – Comissão Nacional da Verdade, em 18 de maio, que foi criada para apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas durante o período da Ditadura Militar, Clarice Herzog, viúva Vladimir, solicita junto a comissão, a retificação de seu atestado de óbito, que alegava, como causa da morte, “enforcamento por asfixia mecânica”.
37 anos após a sua morte, no dia 15 de março de 2013, a família do jornalista, recebe finalmente o novo atestado de óbito no Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP) que traz a verdadeira causa da morte “lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório nas dependências do segundo Exército DOI-Codi”.
Em 2009 foi fundado o Instituto Vladimir Herzog (IVH) que tem como missão a defesa irrestrita da democracia, dos direitos humanos e da liberdade de expressão.
A covardia do assassinato na Vila Mariana e a coragem do ato realizado na Praça da Sé há exatos 48 anos, foram determinantes para o início da queda de um regime ditatorial e a construção do país democrático que é o Brasil hoje.