Os anos pioneiros da mais paulistana das TVs
a TV Cultura
São Paulo é sede de grandes emissoras de televisão, como a Bandeirantes, o SBT e a Rede TV!, por exemplo. E também foi pioneira ao sediar a primeira emissora do Brasil, a TV Tupi, nos anos 50. Mas, poucas emissoras são tão ligadas à memória da cidade quanto a TV Cultura, que inaugurou suas transmissões no dia 15 de junho de 1969.
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A televisão no Brasil tem início comercialmente em 18 de setembro de 1950, quando foi inaugurada a TV Tupi em São Paulo, com equipamentos trazidos por Assis Chateaubriand para seu conglomerado de mídia, os Diários Associados, fundando assim o primeiro canal de televisão no país.
O pioneirismo de Chateaubriand garantiu aos Diários Associados o direito de exploração, sob concessão, em 1958, do canal 2 VHF de São Paulo. Assim, em 20 de setembro de 1960, entra no ar a TV Cultura, com o slogan “um verdadeiro presente de cultura para o povo” e com o logotipo C2 Cultura e uma indiazinha desenhada no centro.
A TV Cultura iniciou suas operações com um estúdio de 30 m² instalado no décimo quinto andar do Edifício Guilherme Guinle, na Rua 7 de Abril, 230, o mesmo estúdio onde a TV Tupi iniciou suas transmissões.
Os técnicos e os atores eram, aliás, os mesmos da TV Tupi e, além disso, sua antena no alto do Edifício Altino Arantes também era a antiga antena da TV Tupi.
Já tendo um canal próprio, a TV Tupi, os Diários Associados colocaram o canal 2 no ar sem muita expectativa e com pouca divulgação, de forma que muitos nem souberam de seu lançamento.
Como a TV Tupi era, por assim dizer, a emissora “comercial” do grupo, de onde vinha o faturamento com anúncios, para preencher a grade de programação da Cultura, os Diários Associados formaram, em 1963, uma parceria com o Governo do estado de São Paulo e com o SERTE (Serviços de Educação de Rádio e Televisão), que dariam origem a dez horas de programação educativa no novo canal.
Por volta da década de 1960 a TV Tupi já tinha seus estúdios no Sumaré e a Cultura “herdou” as instalações da rua 7 de abril. Mas, em 28 de abril de 1965, um curto-circuito provocou um incêndio onde funcionava o estúdio da Cultura, obrigando os Diários a compartilhar as instalaões da Tupi para produzir os programas da Cultura, o que não era muito adequado.
Assim, em 1966 a TV Cultura se instala em um bosque ao lado da Lagoa Santa Marina no bairro da Água Branca, o que provocou um aumento dos custos operacionais da emissora, fazendo com que Assis Chateaubriand, decidisse devolver a concessão ao governo de São Paulo e vender os equipamentos, o terreno e as edificações da emissora para órgão, encerrando o que pode ser chamado de primeira fase da TV Cultura.
A Fundação Padre Anchieta
Para gerir o patrimônio da antiga emissora, a Lei nº 9.849, de 26 de setembro de 1967, autorizou o Governo do Estado de São Paulo a “constituir a Fundação Padre Anchieta Centro Paulista de Rádio e TV-Educativa” uma entidade destinada a promoção da educação e cultura por meio da televisão e rádio, conforme seus artigos iniciais:
“O GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO:
Faço saber que, nos têrmos do § 1.º do Artigo 24 da Constituição Estadual, promulgo a seguinte lei:
Artigo 1.º – Fica o Poder Executivo autorizado a constituir uma Fundação destinada a promover atividades educativas e culturais através do rádio e da televisão.
Parágrafo único – A Fundação de que trata êste artigo, com a denominação de Fundação “Padre Anchieta” – Centro Paulista de Rádio e TV-Educativa, terá autonomia administrativa e financeira e seu prazo de duração será indeterminado.
Artigo 2.º – À Fundação “Padre Anchieta”-Centro Paulista de Rádio e TV-Educativa, na consecução de seus objetivos, caberá:
I – operar estações de Rádio e TV-Educativa;
II – produzir em seus próprios estúdios, mediante aquisição, adaptação ou dublagem de material de transmissão, tele-aulas, aulas televisionadas, programas educativos, culturais e artísticos, ao vivo, em “video-tape”, ou cinescópio atingindo o rádio, no que a êste fôr aplicável; e
III – distribuir suas programações através dos sistemas universitários estadual, nacional e internacional de Rádio e TV-Educativa.
Criada a fundação, o governo do estado trabalhou para viabilizar o início das transmissões televisivas.
Primeiro vieram as obras, os prédios. Depois os artistas, que formavam o Conselho Curador e a Diretoria. E então os equipamentos.
A equipe inicial reunida pelo presidente, José Bonifácio Coutinho Nogueira, elaborava um cronograma de trabalho para colocar no ar a TV Cultura em 1969.
Após dois meses de transmissões experimentais, finalmente, no dia 15 de junho de 1969, a TV Cultura entrava no ar trazendo os discursos do governador Roberto de Abreu Sodré e do presidente da Fundação Padre Anchieta, José Bonifácio Coutinho Nogueira, apresentando aos brasileiros a nova emissora e os programas que passariam a ser veiculados com as transmissões regulares.
Os primeiros programas foram verdadeiros projetos culturais
A Fundação Padre Anchieta priorizou temas contemporâneos e inéditos para contribuir com a formação de uma cidadania qualificada.
Um de seus primeiros projetos foi o “Curso de Madureza Ginasial”, uma série de teleaulas que concorria com novelas nos outros canais da TV na época. Cada aula tinha duração de 20 minutos e as Secretarias de Educação de várias cidades paulistas criaram “telepostos”, locais em que os alunos podiam se reunir em grupos para assistir às aulas, com a presença de um orientador que ajudava nas dúvidas.
Ainda na primeira semana de transmissões da TV Cultura, iniciava também o “Jovem, Urgente”, produzido por Walter George Durst e apresentado pelo psiquiatra Paulo Gaudencio.
Gravado com a participação do público, tinha a proposta de debater o comportamento da sociedade – em particular dos jovens.
Vale lembrar que o Brasil vivia uma ditadura militar e o mundo passava por uma fase de grandes transformações sociais.
O movimento estudantil havia eclodido com toda a força na Europa. Nos Estados Unidos, nascia o movimento hippie e os movimentos pacifistas contra a guerra do Vietnã. No Brasil os estudantes saíam às ruas para protestar contra o regime militar. Nesse clima o “Jovem, Urgente” discutia temas como liberdade de opinião, virgindade, conflitos de gerações e outros tabus sexuais e culturais. Se o programa evidenciou a independência editorial da TV Cultura da influência do governo, marcou também o início dos problemas que a emissora viria a enfrentar com a censura, que não via com bons olhos esta autonomia e ousadia da emissora.
Em 1971, foi lançado o primeiro programa de caráter noticioso: “Foco na Notícia”, em plena guerra do Vietnã, pauta frequente do programa, o que acabou rendendo mais uma tentativa de censura com duras críticas, desta vez vindas do consulado americano.
Nos três primeiros anos de atuação, a TV Cultura colocou no ar mais de oitenta séries diferentes, entre produções próprias e adquiridas de terceiro, um período de consolidação da emissora como entidade livre e democrática.
Com a troca do governo, em 1971, a Fundação viria a enfrentar sua primeira grande prova de fogo: a tentativa do novo governador de retirar sua independência. Porém, com a proteção do Estatuto, a tentativa de modificar a vocação cultural da emissora não pode ir à frente, mas não evitou o que ficou conhecido como “asfixia financeira”, já que as verbas destinadas à manutenção da TV Cultura foram sendo reduzidas, o que levou à saída de José Bonifácio Coutinho Nogueira da Presidência da Fundação. Naquele ano, em solidariedade, todos os diretores também pediram demissão, na primeira grande crise da emissora.
Blindada por seu estatuto, a Fundação Padre Anchieta seguia driblando a censura e falta de verbas, e conseguia garantir que a cultura produzisse programas que ficaram na memória das pessoas, como o Vila Sésamo, o Vox Populi, o Fanzine, a Fábrica do Som… todos da década de 1970.
O caso Vladimir Herzog marcou a história da Cultura
A TV Cultura nascera em plena ditadura militar e teve a ousadia de nascer “independente”, embora com verbas do governo paulista, seu estatuto, como já dissemos, “blindava” a emissora de pressões externas, o que não impediu um duro golpe contra sua liberdade editorial e o que ela significava, ocorrido em 1975.
Naquele ano, o advogado, empresário e jornalista José Mindlin era Secretário de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado e nesta função, cabia a ele avaliar os candidatos à vaga aberta de diretor de jornalismo da TV Cultura. Em suas próprias palavras, ele indicou para o cargo o jornalista Vladimir Herzog:
“O nome do Vlado (Vladimir Herzog) foi indicado para a Diretoria de Jornalismo da Fundação. Houve vários candidatos, mas o currículo do Vlado era de tal forma superior, que não havia hesitação possível. Não o conhecendo pessoalmente, convidei-o para uma conversa na Secretaria, e a boa impressão se confirmou plenamente. Assim, apressei-me a indicar seu nome ao Governador Paulo Egydio Martins, para não retardar o preenchimento do cargo.
Feita a indicação, estranhei que o assunto não fosse rapidamente resolvido. Comecei a saber de pressões injustificadas contra o Vlado e em favor de outro candidato, a meu ver, menos qualificado. Isso me fez insistir na indicação, afinal aceita pelo Governador depois de mais ou menos um mês.
Vlado nomeado e empossado, viajei para um seminário nos Estados Unidos, e, na volta, informou-me o Governador que aparentemente estavam surgindo problemas na TV Cultura. Sugeriu-me que entrasse em contato com o “Chefe do SNI” (Serviço Nacional de Informação) , órgão responsável pela censura no governo militar.
“Tive esse encontro no dia seguinte, no próprio gabinete do Governador (era dia de despacho), e aí defendia posição do Vlado, que estava sendo criticado, recusando-me a demiti-lo sem razões válidas para tanto. Chegamos a um acordo, que levamos ao conhecimento do Governador, no sentido de que o Vlado continuaria no cargo, e que, se surgissem fatos graves, o Coronel se comunicaria conosco, não tomando qualquer medida, sem prévio entendimento com o Governador ou comigo”, conta Mindlin em depoimento ao site do Instituto Vladimir Hoerzog.
Tudo parecia acomodado, até que Mindlin viaja para os Estados Unidos, em 24 de outubro de 1975, mesmo dia em que o governador viaja para o interior de São Paulo.
Nesta data o diretor de jornalismo da TV Cultura é inicialmente preso na redação da TV Cultura. Por pressão de colegas e do próprio Mindlin, ele é liberado, ainda na redação, mas convocado a comparecer às instalações do DOI-CODI, órgão de repressão da ditadura. Vlado comparece voluntariamente no dia seguinte, 25 de outubro e dentro das instalações do órgão, na Vila Mariana, bairro de São Paulo, foi assassinado pelos militares.
A alegação para a prisão de Vlado seria sua suposta ligação com o Partido Comunista, mas ainda que correndo o risco de sermos demasiadamente simplórios, o ataque ao diretor de jornalismo da TV cultura era na verdade um ataque às posições mais progressistas e favoráveis a uma abertura política de todo o governo de São Paulo.
A morte de Vladimir Herzog impactou a sociedade brasileira de tal forma que foi considerada um marco na derrubada do regime militar, como contamos no post: “O culto ecumênico que simbolizou o início da redemocratização brasileira“.
Apesar do duro golpe, a TV Cultura, seguia em frente, acompanhando a sociedade dos anos 70 e início dos anos 80 com programas icônicos, consolidando uma posição de protagonismo na divulgação da cultura, como prevê seu estatuto.
Sobre isso, nosso post da próxima semana, vai trazer muita nostalgia a quem viveu e acompanhou os programas da Cultura nos anos 80, 90 e 2000.