São Paulo
Cidade sobre rios
Tão cíclico quanto o regime de chuvas que acompanha as mudanças das estações do ano são as enchentes em ruas e avenidas da cidade de São Paulo. Cíclicas e previsíveis. Mesmo assim, todos os anos, se repetem, causando prejuízos, destruição, eventualmente mortes e doenças.
Quantas vezes, caminhando pelas ruas da cidade, passamos ao lado de bueiros, ouvimos o barulho de água corrente, pensamos em enxurradas, “água escorrendo”, “vazamento”, “galeria pluvial” e tantos outros nomes comuns e não nos damos conta de que ali pode, e a probabilidade é mesmo muito grande, desta água ser um rio, correndo, abaixo de nossos pés, soterrado por camadas de asfalto.
Pense em uma das grandes avenidas de São Paulo.
Avenida 23 de maio? Lá tem rio embaixo, o Anhangabaú. Avenida 9 de Julho? Embaixo corre o Rio Saracura. Avenida Pacaembu? Corre o rio de mesmo nome. Avenida dos Bandeirantes? Parte dela está em cima do Córrego da Traição. Eliseu de Almeida? Tem o Rio Pirajussara por baixo. Embaixo da Avenida Salim Farah Maluf corre o rio Tatuapé.
Nem precisa citar os três maiores rios da capital, Pinheiros, Tietê e o Tamanduateí.
É difícil mesmo crer, olhando para a cidade de São Paulo, que a maior metrópole do Brasil está construída sobre mais de 300 rios, córregos e cursos d’água que neste momento, enquanto você lê este texto, estão passando por debaixo de milhares de construções e milhões de paulistanos. Alguns, por incrível que possa parecer, nascem nas regiões mais urbanizadas da cidade.
É o caso do Rio Saracura. Quer conhecer sua nascente? Vá de Metrô. Desça na Paulista e caminhe poucos metros, nas proximidades do MASP lá estão as nascentes deste afluente do Anhangabaú.
O Córrego do Sapateiro, afluente do Pinheiros, nasce na Vila Mariana, próximo à avenida Sena Madureira. Há a nascente do Riacho da Aclimação, no bairro do mesmo nome, do Riacho Itapeva, próximo à Arena Corinthians, e do famoso Riacho do Ipiranga, na zona sul, próximo ao Zoológico e ao Jardim Botânico.
Em comum aos que em São Paulo nascem ou passam pela cidade, o descaso. A sujeira. A poluição e o abandono por parte do poder público e da população. Uma relação de ódio com as águas, que aflora toda vez que os sufocados cursos d’água “insistem” em sair do local para onde o poder público paulistano imaginou que “incomodariam” menos.
Processo de retificação e canalização
Autor da tese de doutorado Viver e Morrer em São Paulo, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o historiador Luís Soares de Camargo lembra que a própria escolha do local para a criação da vila que originou a cidade baseou-se na proximidade de dois cursos d’água: o Anhangabaú e o Tamanduateí. “Serviam para a pesca e para levar embora o esgoto e o lixo produzido”, relata.
E foi esse segundo uso o causador da repugnância. “Tais rios, que eram tão importantes, passaram a ser fator de medo e apreensão por conta dos perigos que passaram a representar”, afirma. “Assolada por epidemias, a população entendia que áreas pantanosas ou as várzeas úmidas dos rios eram um criadouro de doenças.”
Teorias médicas vigentes acreditavam que o mau cheiro, ao entrar no corpo via respiração, causava doenças. “Assim, áreas úmidas eram consideradas insalubres. E as regiões secas, por sua vez, eram as mais saudáveis”, explica Camargo.
“Não por outro motivo a elite sempre escolhia os altos para sua residência. No caso de São Paulo, Higienópolis – a cidade da higiene – se contrapunha ao insalubre Brás, na várzea do Tamanduateí”, diz. O historiador aponta que foi essa “caça aos miasmas” o motivador das políticas de secagem das áreas pantanosas.
Foi por isso que, ainda em 1850, o Anhangabaú tornou-se o primeiro rio canalizado de São Paulo. “No outro lado da cidade, a várzea do Tamanduateí era outro local a ser ‘domado’. As primeiras experiências ocorreram a partir de 1870, quando vários canais foram abertos para dar vazão às suas águas”, relata Camargo.
“No início do século 20, o grande projeto de canalização do Tamanduateí estava sendo completado – e a área ‘saneada’ foi transformada em um grande parque, o Dom Pedro 2º. O Tamanduateí, é claro, foi retificado e canalizado.” (fonte)
Os três principais rios da capital são exemplos da desastrosa política de retificação.
O projeto original de retificação do Rio Tietê previa uma extensa área envoltória desocupada, uma área verde nas margens para que, em momentos de enchente, essas áreas contivessem o excesso de água. Mas, o que se viu, na realidade, foi a construção de avenidas marginais asfaltadas, que impedem essa expansão natural das águas. O processo se repetiu no Pinheiros e nos demais rios.
Os rios determinaram o local de fundação de São Paulo
São Paulo nasceu às margens da confluência dos Rios Anhangabaú e Tamanduateí, este último teve grande importância econômica quando navegável, sendo via de transporte para mercadorias, local de pesca e ponto de encontro de lavadeiras.
Até o início do século XX, foi um via de transporte fluvial, atendendo o Mercado Grande (ou Mercado Velho) e o Mercado dos Caipiras que existiam na antiga Rua de Baixo, atual rua 25 de Março, quando barcos transportavam mercadorias e escravos até o Porto Geral.
Frequentemente alagado por estar na área da várzea do Tamanduateí, o local ficou conhecido também como “beco das sete voltas” e ficava onde hoje situa-se a Ladeira Porto Geral, próximo à Casa da Boia.
A relação da Casa da Boia com as águas paulistanas
Ao mesmo tempo em que a cidade de São Paulo crescia vertiginosamente, e, muito razão deste crescimento, a Casa da Boia, que começou com o artesão Rizkallah Jorge produzindo peças de decoração em cobre, foi se tornando cada vez mais uma fornecedora de material hidráulico para a capital paulista.
Canos, tubos, conexões, torneiras, uma variedade de materiais hidráulicos e a boia de caixa d’água, que tornou a empresa famosa passou a ser fornecida tanto para as pessoas, quanto para o poder público.
Nos livros-caixa da empresa, há diversos registros de venda para a Cia de Águas e Esgotos, de materiais hidráulicos para as tubulações da cidade.
A visão desenvolvimentista da administração pública, necessária para acomodar o crescimento da cidade, mostrou, anos depois, que a decisão de retificar e canalizar os seus rios viria a ser um problema para o futuro da metrópole. Por outro lado, naquele início do Séc. XX, as determinações e exigências para o saneamento básico, exigindo que as edificações contassem com ligações de esgoto e água, contribuiu para a erradicação de doenças e o aumento da qualidade de vida da população e foi um dos fatores responsáveis por este mesmo crescimento.
Neste paradoxo, crescia a metrópole e com ela também, a participação da Casa da Boia nesse processo histórico.