São Paulo e Casa da Boia
Paralelos de suas transformações em 126 anos de história
Em 20 de maio de 2024 nossa empresa completa 126 anos de atividades ininterruptas, no centro da maior cidade da América do Sul. Fazendo uma rápida conta, considerando 20 dias úteis em um mês normal, já abrimos a porta de nossa Casa mais de 30.200 vezes e, vimos, pela entrada principal de nossa loja, muita história passar por nossa história.
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O primeiro recenseamento na capital paulista (e do Brasil) foi feito no ano de 1872, antes de Rizkallah Jorge Tahan decidir sair da Síria e tentar a sorte na América. Naquele ano, a cidade contava com 31.383 habitantes, segundo o IBGE.
A primeira linha de bondes da cidade começou a funcionar naquele ano. Puxados por tração animal, ligavam o largo do Carmo (proximidades da Praça da Sé à Estação da Luz).
Pouco antes de Rizkallah Jorge desembarcar no Brasil, a cidade já experimentava uma curva de crescimento acentuado. Já eram 64 934 paulistanos, no ano de 1890. E se a população dobrara em pouco menos de 20 anos, talvez os paulistanos da época ainda nem tivessem ideia do que aconteceria nos próximos 10.
Quando chegou ao Porto de Santos, vindo de Homs, na Síria, e subiu a serra para a capital paulista, no ano de 1895, encontrou uma cidade com algo em torno de 100.000 habitantes. Uma cidade que apenas três anos antes, em 1893, tornou obrigatória a apresentação de projetos arquitetônicos completos para que o poder municipal, após análise e aprovação, autorizasse a necessária licença para construir.
Aqui, nosso fundador vislumbrou a oportunidade de progredir, vindo a comprar a empresa na qual se empregou como um ajudante geral.
No ano de 1898, quando São Paulo estava próxima de atingir 240.000 habitantes, Rizkallah fundou a Rizkallah Jorge e Cia.
Faltavam apenas dois anos para a virada do século. A escravidão em nosso país havia sido abolida há apenas 10 anos e o Brasil havia deixado de ser uma monarquia há menos de 9 anos e a cidade de São Paulo começava a ganhar protagonismo na cena econômica, social e cultural.
A partir da segunda metade do século XIX, a expansão do café no interior do Estado atrai investimentos para
São Paulo, estimulando um intenso processo de urbanização, na virada do século XIX para o XX a população na cidade mais do que triplica.
Essa população que chega à cidade, desde a elite cafeeira aos imigrantes atraídos para a cidade
pelas promessas de emprego, transformam seu perfil sociocultural de ocupação, contribuindo para as transformações de ordem urbana.
A ascensão econômica da burguesia local começa a exigir uma modernização urbana seguindo os
moldes europeus, ao mesmo tempo os imigrantes trazem consigo um saber-fazer servindo como mão-de-obra especializada que terá importante papel na construção dessa nova cidade.
A Rizkallah Jorge e Cia cresce com a cidade
É consenso entre historiadores e urbanistas que a cidade de São Paulo foi praticamente reconstruída a partir da a partir da segunda metade do Séc. XIX até as primeiras décadas do Séc. XX.
Nesse contexto de urbanização, Rizkallah Jorge, que trouxe da Síria o conhecimento do manuseio do cobre, instala sua pequena fábrica naquela que era uma das mais importantes vias da capital, a Rua Florêncio de Abreu.
Não apenas hábil artesão, como também empreendedor inteligente, Rizkallah percebe o significado deste crescimento acelerado da capital e, adota uma estratégia contrária a de outras empresas do mesmo ramo de atividade, que voltavam sua produção a suprir as necessidades das instalações industriais, produzindo, maquinas para a indústria cafeeira, por exemplo.
Rizkallah foca sua produção no espaço do “lar”. Sua empresa inicia uma produção de objetos como uma enorme variedade de lustres em cobre, porta-guarda-chuvas, materiais de decoração, arandelas, candelabros e variados itens para decoração.
A estratégia se mostra bem sucedida e logo ele, que emigrar só, deixando a esposa na Síria, resolve trazê-la ao Brasil e aqui começar uma vida próspera em sua companhia e com os filhos que viriam.
1900. A chegada do Século XX marca o nascimento do primeiro filho do casal Rizkallah Jorge e Zékie Naccache. Nasce o primogênito, Jorge Rizkallah Jorge. Seu segundo filho, Nagib, nasceria em 1902 e, em 1904, o terceiro e último: Salim.
Com a família formada e os negócios prosperando, era hora de proporcionar um conforto maior à esposa e filhos.
No ano de 1909, Rizkallah inaugura a residência da família no imóvel de uso misto construído para ser também sua loja e as instalações da sua fábrica. Coincidentemente, no mesmo ano que o médico Carlos Chagas identifica uma doença parasitária tropical causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, a “Doença de Chagas”.
A menção ao cientista não é acaso. Pois foi justamente o combate às doenças tropicais que deram novo impulso aos negócios da Rizkallah Jorge e Cia a partir do início do Séc. XX.
Em São Paulo, em 1903, o médico sanitarista Emílio Ribas repetiu as experiências de médicos cubanos, que haviam descoberto que a febre amarela era transmitida pelo Aedes Aegypti, deixando-se picar, junto de Adolfo Lutz, Oscar Moreira e outros voluntários, por mosquitos infectados pelo sangue de um portador da doença.
No mesmo ano, fez a experiência de entrar em contato com os dejetos dos doentes, de deitar-se ao lado deles para mostrar, mais uma vez, que o contágio não era por toque ou contato, no Hospital de Isolamento (hoje nomeado Instituto de Infectologia Emílio Ribas).
As experiências destes pioneiros da medicina em São Paulo impactaram diretamente os negócios da Casa da Boia.
A medida que provaram que a profilaxia das doenças tropicais que assolavam o país era a melhoria das condições de saneamento, incentivaram, ou pressionaram os governos a adotar políticas públicas de incentivo ao saneamento nas cidades.
Começa a nascer a “Casa da Boia”
Rizkallah aproveita este movimento para ampliar a produção de sua indústria, acrescentando aos produtos de decoração para o lar, os produtos para atender a demanda crescente de materiais sanitários.
Com esta ampliação, a pequena fundição passava a comercializar não apenas com os clientes residenciais, que ainda eram contemplados, mas também com o poder público, por meio dos Departamentos de Água e Esgotos da capital, São Paulo Gas Company, com a São Paulo Light and Tramway e com grandes escritórios de engenharia e construção, como o Ernesto de Castro, associado a Ramos de Azevedo.
Passam a sair de sua linha de produção, canos, tubos, sifões, válvulas, torneiras, caixas d’água e o produto que viria a ser responsável pela mudança do nome da empresa: a boia de caixa d’água.
O censo de 1920 indicava que a cidade de São Paulo contava já com quase 580.000 habitantes. Era a década da expansão industrial e da urbanização acelerada.
A rua Florêncio de Abreu era uma referência na São Paulo de então. Ela abrigava o Éden Club, localizado no número 22: um sobrado com um pequeno teatro na sala da frente e diversas mesas para jogos em seu interior. Em uma das esquinas da rua ficava a Companhia Industrial, com atividades de fiação, tecelagem e tinturaria e com cerca de 400 operários; a fábrica de móveis Santa Maria; fábrica de livros Manderbach & Co.; a fábrica de confeitos dos Irmãos Falchi e a fábrica de bebidas Matinho Chaves & Comp, entre outras.
Em 1919 a Ford Motor Company inaugurava filial brasileira da companhia na Florêncio de Abreu, de onde saiu o primeiro icônico “Ford Modelo T” do Brasil.
Neste contexto, destacava-se o belo sobrado em estilo eclético, erguido por Rizkallah Jorge logo no começo da rua.
A sua Casa Comercial. A Casa da Florêncio de Abreu, A Casa que vendia materiais em cobre, a Casa que vendia boias, a “Casa da Boia”.
Assim ficou conhecida a empresa de Rizkallah Jorge, muito mais do que pelo seu nome real, “Rizkallah Jorge e Cia”.
Corria já os anos 30 do Séc. XX, um período conturbado para os paulistas, que no segundo semestre de 1932, viram a cidade ser atacada por tropas federais, em uma guerra civil, conhecida como a “Revolução de 1932”.
A situação política brasileira era delicada naquela época. O presidente ditatorial Getúlio Vargas, tentava controlar a política paulista, o que desagradava a elite (econômica, intelectual e política).
A tensão se elevou de tal forma que os paulistas declararam guerra ao governo federal e pegaram em armas, literalmente. Frentes de batalha entre tropas paulistas e federais surgiram pelo interior, mas a capital não escapou ilesa, sendo atacada pelas tropas federais.
O conflito durou poucos meses e terminou com a rendição dos paulistas, ainda em 1932.
Nem o conflito tirou o foco da empresa, que ainda que com as dificuldades impostas pela situação, continuava a expandir sua produção, admitindo no negócio, os três filhos de Rizkallah Jorge.
Em 1939 a Rizkallah Jorge e Cia passa a se chamar Rizkallah Jorge e Filhos.
A década de 1940 seria marcada por um período de grande prosperidade para o centro de São Paulo.. A região vivia o auge da agitação cultural, com grandes teatros, casas de espetáculo, cinemas gigantescos e restaurantes famosos.
Era a época da expansão viária, da construção de grandes avenidas, da derrubada de antigos edifícios e da construção de novas e modernas edificações.
A Casa da Boia, mais uma vez, via a transformação do centro. Grandes indústrias já não mais ocupavam a região, procurando áreas da cidade com terrenos maiores e mais baratos para sua expansão e a região central passou a abrigar o setor de serviços.
Época em que os bondes ainda conviviam com os ônibus, trazendo milhares de trabalhadores para os escritórios do centro.
Ao mesmo tempo em que consolidou a liderança dos filhos de Rizkallah Jorge no negócio, os anos 40 trazem a marca da perda do fundador da empresa, que falece no ano de 1949.
Oficialmente Casa da Boia
Como um reconhecimento ao nome pelo qual era já há muito conhecida, os filhos de Rizkallah Jorge decidem por incorporar oficialmente o nome “Casa da Boia” à empresa.
Em dezembro de 1951, comunicam oficialmente a alteração da razão social para “Casa da Boia S.A. Comércio e Indústria de Metais”.
A empresa já contava com mais de meio século de vida, quando viu acontecer uma das mais marcantes celebrações da cidade, as comemorações do “IV Centenário” da fundação de São Paulo.
Uma festa sem precedentes que durou três dias e três noites e transformou o centro da cidade em um palco de atividades cívicas e festivas.
A Casa da Boia de então, já não era mais uma fábrica. Percebendo que não conseguiria fazer frente ao capital estrangeiro e à expansão de grandes usinas que chegavam ao Brasil na década de 1950, a segunda geração dos Rizkallah na direção da Casa da Boia decidiu mudar o rumo dos negócios.
Ao invés de tentar concorrer com as novas usinas, optou por se tornar o principal revendedor de metais não ferrosos destes fabricantes. Uma nova fase de expansão se abria para a empresa.
As instalações da fábrica davam lugar agora aos grandes depósitos de onde a Casa da Boia passou a distribuir chapas, tubos, peças brutas, fios, bobinas, de cobre, latão e alumínio.
Já na década de 60, a Casa da Boia passava por grandes transformações. Dos filhos de Rizkallah Jorge, apenas Salim Rizkallah permanecia à frente dos negócios. O empresário focou na estratégia de tornar a empresa a principal distribuidora de metais não ferrosos da cidade, ao mesmo tempo em que acomodava na direção da Casa da Boia a terceira geração da família.
Alfredo Rizkallah, filho de Jorge Rizkallah, passava a fazer parte da direção da empresa, enquanto Salim preparava, também seus sucessores, o filho, Mario Roberto Rizkallah e a filha Maria Teresa Rizkallah.
Foi no início da década de 1970 que Mario Roberto Rizkallah passa a se envolver com os negócios da Casa da Boia, dividindo as atividades empresariais com as acadêmicas (formado em administração foi também professor universitário).
A entrada do filho de Salim Rizkallah no negócio se mostraria fundamental para a preservação do patrimônio imaterial e material da empresa.
Os anos de grande transformação do centro
As décadas de 70 e 80 foram de grande transformação do centro de São Paulo, que, com o surgimento de novos polos comerciais, como a região das avenidas Paulista e Faria Lima, via o esvaziamento dos edifícios comerciais, curiosamente, ao mesmo tempo em que o O metrô chegava às portas da Casa da Boia, já que a estação São Bento fora concluída em setembro de 1975.
A rua Florêncio de Abreu resistia, ainda com sua vocação original. Ficou conhecida como a “Rua das Ferramentas”, devido a instalação de lojas especializadas nas mais diversas ferramentas para uso em inúmeras áreas.
Ali era possível encontrar ferramentas elétricas, manuais, de corte, instrumentos de precisão, material industrial como plásticos e borrachas, ferramentas agrícolas, máquinas, geradores, materiais técnicos industriais, enfim, centenas de lojas vendiam uma infinidade de produtos para uso em indústrias, manutenção e construção civil.
Eram tempos difíceis para a sociedade, que vivia sob uma ditadura. O chamado “milagre econômico brasileiro” que fez o país crescer a taxas elevadas durante a década de 70, mas a custa de grande endividamento público, cobrou a conta na década de 80, período da chamada hiperinflação, que dificultava o planejamento dos negócios.
O centro de São Paulo se transformava em palco da renovação política, primeiro, com a grande mobilização contra o regime militar, após a morte do jornalista Wladimir Herzog, depois com os comícios da campanha por eleições diretas, na praça da Sé e no Vale do Anhangabaú.
Com Salim e Mario Rizkallah à frente da Casa da Boia a empresa atravessou os anos 80 e iniciou os ano 90 sendo surpreendida com tombamento de seu sobrado.
Como parte da revitalização do Vale do Anhangabaú, centenas de imóveis em seu entorno foram considerados de interesse histórico e tombados pela municipalidade no ano de 1992. Entre eles, a Casa da Boia.
Os 100 anos, a revitalização do imóvel e a descoberta de seu valor cultural
Coube à Mario Rizkallah estar à frente da Casa da Boia quando a empresa completou 100 anos, em 1998. Foi o neto de Rizkallah Jorge, filho de Salim Rizkallah, o responsável por promover a restauração arquitetônica da fachada e de duas salas do sobrado sede da empresa.
Ao completar 100 anos de atividades, a Casa da Boia entregava para São Paulo um sobrado de fachada restaurada, um restauro que não se deu apenas no plano físico do imóvel.
A restauração da Casa da Boia iniciou uma nova fase em que a empresa “se entendeu” como protagonista de uma história de valor para a cidade.
Por iniciativa de Mario Rizkallah a empresa começa a recuperar sua história, primeiramente de maneira informal, disponibilizando em uma mostra permanente documentos históricos, peças fabricadas pela empresa, fotografias e objetos que ajudam a contar a história de São Paulo.
Desde então as iniciativas em prol da divulgação de sua história aprofundam ainda cada vez mais o sentido de patrimônio imaterial da cidade, título, este, oficial. Conferido pela Secretaria de Cultura de São Paulo à Casa da Boia em 2016.
Tendo começado como uma iniciativa informal, o projeto de juntar a atividade comercial com a nova vocação de indutor cultural começa a ganhar corpo com a entrada no negócio, da esposa de Mario, Adriana Rizkallah.
Responsável inicialmente pela manutenção do imóvel, Adriana logo assume a área de projetos e a diretoria cultural da empresa, dando impulso à ressignificação do espaço da loja, utilizando antigos moldes da fábrica recuperados como elementos decorativos e, ao mesmo tempo, indutores da história, fazendo nova leitura da função do cano de cobre no próprio ambiente da loja e coordenando projetos de cunho cultural.
Aos 126 anos passos firmes em um projeto integrado de comércio e cultura
Se quando Rizkallah Jorge fundou a Casa da Boia, a capital paulista não tinha sequer 250.000 habitantes, hoje somos quase 12 milhões de paulistanos. A cidade de poucas ruas hoje “engoliu” o sobrado histórico de nossa sede. O comércio já não é mais feito como naquele Séc. XIX e a São Paulo de 2024 é a maior cidade da América Latina, com tudo de bom e de ruim que isso significa.
O mundo mudou e a Casa da Boia mudou junto. Mas, mudar, não significou perder a sua essência. Ao contrário, nessa caminhada de 126 anos, mais acrescentou, do que perdeu.
Se a empresa parou de fabricar os produtos de seus anos iniciais, continua a vender essencialmente o cobre, o latão, a boia de caixa d’água que a tornou famosa. Resiste firme, no coração da metrópole, não apenas honrando a tradição do comércio, mas agora, agindo como guardiã, protagonista e difusora de sua história, supera ser apenas uma loja.
A Casa da Boia do Séc. XXI compreendeu o legado de sua história, resiste e insiste. Mantendo valores centenários se entende como espaço de resistência e quer continuar a construir uma história cada vez mais relevante para São Paulo.
Seu sobrado amarelo, destacando-se da paisagem da Rua Florêncio de Abreu foi, é e continuará sendo um marco da cidade que em seu entorno se transformou tanto e tão profundamente, desde que Rizkallah Jorge Tahan abriu as portas da Casa da Boia, há 126 anos.