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Uma breve história da hidráulica

e sua importância para o crescimento das cidades

Catálogo da Casa da Boia, que mostra a variedade de sifões, essenciais para as construções modernas.

No momento em que a Câmara Municipal de São Paulo discute a revisão do Plano Diretor da cidade, mais uma vez vem à tona a discussão a respeito da verticalização das moradias, com o novo plano autorizando a construção de edifícios altos nas proximidades dos eixos de transporte público.

A imprensa traz este debate muitas vezes se valendo das opiniões de especialistas em transporte público em engenharia de tráfego, sociólogos e historiadores que analisam as implicações das mudanças na sociedade, associações de bairros, enfim, todo um conjunto de pessoas envolvidas nas mudanças da vida da cidade.

Vivemos o Séc. XXI e uma questão absolutamente fundamental nesta discussão é também absolutamente ignorada, pelo simples fato de que se trata de uma questão há muito superada pela humanidade, mas que foi o fator determinante para a possibilidade da verticalização das moradias: o domínio do fluxo das águas.

Simples assim. Sem a capacidade de captar a água, transportá-a, entregar às edificações, retirar, retratar, devolver à natureza e iniciar este ciclo infinitas vezes, a humanidade não teria atingido seu estágio de evolução. A ciência envolvida em todos estes processos tem nome: hidráulica.

Você já se perguntou o quanto de ciência existe entre a captação da água dos rios e o abrir da torneira de sua casa?

Tudo começa na Babilônia e evoluiu com Arquimedes

Por volta do ano 3750 AC, na Babilônia, às margens do Rio Eufrates (região do Iraque), os primeiros coletores de esgotos são registrados. Os egípcios já utilizavam tecnologias de irrigação às margens do Rio Nilo em 2.500 AC e o primeiro sistema público de abastecimento de água data de aproximadamente 690 AC, na Assíria.

Mas a hidráulica ganhou impulso com os estudos de Arquimedes, matemático, filósofo, físico, engenheiro, inventor e astrônomo grego.

O parafuso de arquimedes permitiu de forma simples transportar a água de um patamar inferior para outro, superior.

Dentre suas inúmeras áreas de estudo, Arquimedes foi quem se dedicou aos primeiros estudos de hidrostática (o estudo dos fluidos em repouso), formulando a famosa teoria de Arquimedes:

“Todo corpo submerso num líquido em equilíbrio, sofre ação de uma força denominada Empuxo, cuja intensidade é igual ao peso do volume de líquido deslocado, sendo tal empuxo vertical, agindo de baixo para cima e cuja linha de ação passa pelo centro de gravidade do líquido deslocado”.

A teoria seria fundamental para o desenvolvimento da navegação e também para o futuro da hidrodinâmica (estudo dos movimentos dos fluidos) e consequentemente do desenvolvimento da navegação.

Mas aqui nos interessa outra invenção: o parafuso de Arquimedes. Um sistema simples, mecânico, mas que pela primeira vez permitia de forma efetiva o transporte da água de um nível mais baixo para outro, mais alto.

A partir de então, as cidades não precisariam mais ser construídas sempre abaixo das fontes de água, o que mudou a forma de ocupação humana.

Os estudos de outro grego, Ctesíbius na área da pneumática (estudos do movimento do ar) deram origem à bomba de Ctesíbius, que usava o ar comprimido mecanicamente para impulsionar a movimentação dos líquidos.

Os aquedutos romanos
Os aquedutos romanos usavam soluções baseadas na gravidade para o transporte de água.

Por volta de 150 AC os romanos, embora conhecessem os princípios da hidrostática, hidrodinâmica e pneumática, foram a primeira civilização a utilizar em larga escala o transporte da água em suas cidades.
Construíram vários aquedutos para levar água de fontes muitas vezes distantes de suas cidades e vilas, fornecendo banhos públicos, latrinas, chafarizes e residências privadas. Os aquedutos também forneciam água para operações de mineração, trituração, agricultura e jardinagem.

Os aquedutos moviam a água apenas com a gravidade, ao longo de uma ligeira inclinação para baixo dentro de canais de pedra, tijolo ou concreto.

A maioria dos sistemas de aquedutos incluíam tanques de sedimentação, o que ajudava a reduzir quaisquer detritos na água. As comportas e aquae castella (tanques de distribuição) regulavam a oferta para determinados destinos. O escoamento de água de aquedutos também lavavam as fossas e o esgoto.

O primeiro aqueduto de Roma fornecia uma fonte de água situada no mercado de gado da cidade. No século III d.C., a cidade tinha onze aquedutos, sustentando uma população de mais de um milhão de pessoas em uma economia de uso extravagante de água; a maior parte do recurso hídrico abastecia os vários banhos públicos da cidade.

O império romano ruiu no início da Idade Média. Com isso, novas regiões foram surgindo tais como Germânia, Bretanha, Espanha, Portugal e firmaram-se como organizações socioeconômicas no sistema feudal. Nesse período, o consumo da população da Europa era de apenas um litro de água por pessoa diariamente.

Entretanto, o abastecimento sofreu um retrocesso no aspecto sanitário. Enquanto os romanos faziam captação de longas distâncias, essas novas regiões faziam a captação diretamente dos rios. Com a queda de Roma, o conhecimento ficou arquivado em mosteiros religiosos.

Nesse período, a responsabilidade de gerenciar a água deixou de ser do governo e passou a ser coletivamente dos cidadãos. Parte do consumo de algumas famílias era garantido por meio de compra e transporte por carregadores. Já outras, em sua maioria, escavavam poços dentro de suas casas, próximas a fossas e esterco de animais, causando contaminação.

Essa prática causou a proliferação em massa de doenças como cólera, lepra e tifo em um período de grandes epidemias. Na época, a peste negra, transmitida através da pulga de ratos, infectou metade da população e dizimou cerca de 1/3 da população Europeia. Na China e na Índia o panorama não foi diferente, mais de 23 milhões de pessoas foram levadas a óbito em menos de 12 anos.

Evolução das máquinas propicia o adensamento das cidades
O vaso sanitário, patenteado por Joseph Bramah.

A retomada dos estudos e a evolução das tecnologias que se aceleraram a partir do Séc XV começou a permitir um melhor controle sobre a distribuição de água nas cidades.

Em 1600 o físico belga Simon Stevin desenvolve o Teorema de Stevin, uma das “leis” fundamentais da hidrostática, abrindo caminho para o avanço na projeção de equipamentos hidráulicos. Pouco tempo depois, por volta de 1630, a Inglaterra já se utilizava do vapor d’água para mover bombas cada vez maiores e mais potentes nos sistemas de distribuição.

Mas, a demonstração de Stevin, de que a pressão que um líquido exerce sobre uma superfície depende apenas da altura da coluna do líquido e da área da superfície, não importando o tamanho ou a forma do recipiente, foi fundamental para o desenvolvimento dos sistemas hidráulicos modernos.

Em 1664, a distribuição de água canalizada foi incrementada com a fabricação de tubos de ferro fundido moldado, por Johan Jordan, na França, e sua instalação no palácio de Versailles. Pouco depois, Johan inventou a bomba centrífuga e em 1775, Joseph Bramah inventou o vaso sanitário, na Inglaterra.

Origem do saneamento básico no Brasil e a a distribuição de água em São Paulo
Arcos da Lapa, remanescentes do aqueduto da Carioca, o primeiro do Brasil.

O primeiro registro de um sistema de saneamento em nossas terras remonta a 1561, quando Estácio de Sá, fundador da cidade do Rio de Janeiro, ordenou a escavação do primeiro poço para abastecer a região. Posteriormente, em 1744, o primeiro chafariz foi construído na capital.

Em São Paulo, a conexão da cidade com suas águas desde fins do século XIX ocupou espaço central na imprensa e nos debates da Câmara sendo uma questão sensível para a população paulistana. Neste contexto de transformações na cidade, a Casa da Boia ocupou um papel de destaque.

São Paulo nasceu cercada por rios e conforme as águas foram encontrando obstáculos e limites que outrora não existiam em seus caminhos, com a expansão da área urbana a forma de compreensão de sua presença na cidade adquiriu um caráter pejorativo, por vezes associada à sujeira e às doenças.

A Companhia Cantareira & Esgotos, foi formada em 1877 para organizar sistemas de abastecimento de águas e a municipalidade outorgou à iniciativa privada esta ação.

Reservatório da Companhia Cantareira, primeira empresa a assumir a distribuição de água em São Paulo.

A água, que até então era distribuída de forma gratuita aos moradores, a partir de então, passou a ser cobrada da população. A partir de fins dos anos de 1880 inúmeros chafarizes foram desativados obrigando a população a realizar a instalação da infra-estrutura para o recebimento da água encanada em seus imóveis.

A Cia Cantareira durou até 1893, quando o Decreto Estadual n. 154, de 8 de fevereiro de 1893,estabeleceu a criação da Repartição Técnica de Águas e Esgotos (RTAE), subordinada à Secretaria de Agricultura, com o objetivo de se responsabilizar pela construção e gerenciamento das redes de água e esgoto na cidade.

A Casa da Boia aproveita o momento para seu crescimento

As campanhas de salubridade promovidas pelos órgãos públicos, fizeram com que as demandas da Casa da Boia crescessem de forma acelerada nos finais do Séc. XIX e início do Séc. XX.

Neste período em que os materiais sanitários eram necessários e o interesse na sua aquisição se dava tanto no âmbito privado, para propiciar que as residências seguissem os padrões de salubridade exigidos, quanto pelo poder público, que visava equipar a cidade com obras pluviais, um dos principais clientes da Casa da Boia era a própria Repartição de Águas e Esgotos.

O livro-caixa nº 5 (pp. 8, 14, 16, 24, 37, 42, 64, 68, 77 e 85), mostra que entre outubro de 1918 e julho de 1919, com uma periodicidade praticamente mensal, a Companhia de Águas adquiriu equipamentos na Casa da Boia, que somaram mais de 18 contos de réis, um volume bastante significativo.

É evidente o papel central que a salubridade adquiriu no período, já que os efeitos da falta de saneamento ocasionaram inúmeras mortes na cidade desde o século XIX, pela doença classificada pelos médicos da cidade como “febres paulistas”.

A situação precária do saneamento agia diretamente no aumento das epidemias, em especial daquelas cuja contaminação se dava pelos sistemas de água e esgoto.

As doenças que se espalhavam afetavam a máquina administrativa, o setor cafeeiro e o cotidiano das cidades. Além da febre amarela, havia outras doenças que causavam a morte de diversas parcelas da população, entre elas: a febre tifóide, difteria, tuberculose, varíola e peste bubônica.

Foi em virtude de uma epidemia de febre amarela que afetou a cidade e se alastrou rapidamente devido às condições sanitárias precárias, que a Casa da Boia ganhou notoriedade.

Aproveitando este contexto e o nicho de mercado que se criava em decorrência da saúde pública, tendo em vista o predomínio do higienismo e do sanitarismo na virada do século, Rizkallah Jorge passou a comercializar as Boias para caixa d’água que fizeram com que seu estabelecimento passasse a ser popularmente conhecido como “Casa da Boia”, um momento decisivo na história dos 125 anos deste que é um dos mais tradicionais estabelecimentos comerciais da cidade de São Paulo.

Seção de fabricação de sifões, curvas e canos de chumbo da Casa da Boia, por volta de 1914.

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