Zekié Naccache
uma pioneira na história da Casa da Boia
Imagine-se nos anos finais do Séc. XIX. Você, mulher, com seus vinte e poucos anos, recém-casada, morando em uma das principais cidades de seu país.
A vida parece estável, apesar de dura. Seu marido, um hábil artesão, cuidava de uma pequena indústria de produtos de cobre, mas, de espírito inquieto, certo dia lhe diz que faria uma pequena viagem para tratar de negócios. Como era conveniente para uma mulher no Séc. XIX, você pouco questiona, e o acompanha partir.
Poucos dias depois recebe uma carta dele dizendo que, ao invés de uma rápida viagem, decidiu tentar a vida no outro lado do mundo, literalmente. Que confiasse que as coisas progrediriam e que logo estariam juntos novamente.
Longe de ser um roteiro de ficção e talvez longe de ser um caso único, assim começa o recorte na história de uma mulher pioneira na história da Casa da Boia: Zekié Naccachian.
Nascida na Síria, descendente de armênios, como era usual naquela época, foi apresentada à Rizkallah Jorge Tahanian (também de ascendência armênia) por seu pai, amigo do pai de seu futuro marido.
Ao casar com o jovem artesão inicialmente iniciaram a vida em comum em Aleppo. O espírito irrequieto do marido que não via grandes possibilidades de ascensão na Síria de então, acabou por deixá-la só nos primeiros anos do casamento, quando, em 1895, Rizkallah Jorge decidiu “fazer a América”.
O Jovem embarcou com mais três amigos no porto de Trípoli, na Líbia, de onde enviara a carta em que contava à esposa sua decisão de viajar para o Brasil. Chegaram em Santos naquele mesmo ano e logo Rizkallah Jorge se estabeleceu em São Paulo, como empregado em uma pequena metalúrgica.
Três anos depois, e muito provavelmente, muitas cartas enviadas à esposa, Rizkallah Jorge toma outra decisão. Funda sua própria empresa na capital paulista. A Rizkallah Jorge e Cia, possivelmente a primeira empresa a fabricar peças de cobre na capital, no ano de 1898. A empresa viria a ser logo conhecida como a Casa da Boia, por ser pioneira ao vender a boia para caixa d’água.
Algum tempo depois, com o empreendimento crescendo, Rizkallah decide que era adequado trazer a esposa para o novo país e Zékie Naccachian chega ao Brasil no final do Século XIX. Como acontecia com vários imigrantes estrangeiros, cujos nomes representavam dificuldade para os agentes de imigração brasileiros, acaba por ser registrada “Zackie”.
Sua presença estrutura a família
A biografia de Rizkallah Jorge Tahan é bastante conhecida. Inicialmente hábil artesão que também tinha uma visão empreendedora bastante aguçada, soube aproveitar o crescimento exponencial da capital paulista para alavancar os negócios de sua empresa, constituindo fortuna com a venda de produtos de cobre e material hidráulico na virada dos séculos XIX para o XX e tornando a Casa da Boia referência no comércio de cobre nas cidade.
Mas, de presença reservada, a esposa Zekié, ou Zackie, talvez tenha sido a primeira “presença feminina” na trajetória da empresa fundada pelo marido. Contavam os imigrantes mais antigos e aqueles chegaram a conhecer o casal, que Zekié preparava e levava as refeições para a loja, para que Rizkallah Jorge não precisasse sair do ambiente de seu comércio.
O casal teve o seu primeiro filho, Jorge, no ano de 1900. O livro “A Coletividade Armênia no Brasil”, escrito originalmente em armênio na década de 1940, por Yesnig Vartanian e reeditado em português em 2021, agora com coordenação do Prof. Dr. Hagop Kechichian, registra que “A presença de um filho e herdeiro entusiasmou Rizkallah, que trabalhava incansavelmente na nova loja e fábrica, misturando dia e noite, para garantir um bom futuro ao filho e à sua velhice”.
Em 1902, nasce Nagib, o segundo filho do casal, e em 1904 o mais novo e último filho, Salim.
Zekié exercia grande papel na educação dos filhos e se tornava, à medida da ascensão social do casal, uma figura influente na sociedade paulistana do início do Séc. XX.
Imagem simbólica registra a influência de Zekié no núcleo familiar
Poucas imagens são conhecidas do casal Rizkallah Jorge e Zekié Naccache em sua juventude. Uma das mais icônicas é a foto que ilustra esta postagem. Na nova residência da família Rizkallah, um imóvel imponente na rua Florêncio de Abreu, onde até hoje funciona a loja criada por ele, o registro do casal traz uma leitura simbólica de seus papéis no núcleo familiar e social.
Ao invés de serem retratados lado a lado, Rizkallah Jorge aparece no térreo, “domínio” masculino do ambiente de negócios, a loja e a fábrica. No primeiro andar, como que zelando pela família e no “domínio” social, a esposa Zekié aparece, elegantemente vestida, na área residencial do sobrado de uso misto.
Vale lembrar que no ano em que esta fotografia foi feita, 1910, as lutas das mulheres por igualdade na sociedade estavam em plena efervescência. Nascia inclusive, naquele ano, o primeiro partido político feminino no Brasil, o Partido Republicano Feminino, como ferramenta de defesa do direito ao voto e emancipação das mulheres na sociedade. Aliás, ainda que a pauta do direito do voto feminino tivesse ganhado institucionalidade neste momento, este direito só viria a ser reconhecido em 1932.
“Come. É água”
Com a prosperidade obtida nos negócios, a família se muda do sobrado da rua Florêncio de Abreu para uma mansão na Avenida Paulista nos anos 20. A casa seria o ponto de encontro dos filhos e para as gerações futuras, a casa de “sito”. “Sito” em árabe, significa avó.
Aliás, Jorge, o primogênito do casal Rizkallah e Zekié, mesmo depois de casado, morou por muitos anos com sua esposa e filhos, na casa dos pais. A esposa de Jorge, nora de Zekié, Marie Der Markossian, aprendera a culinária árabe por meio dos ensinamentos da sogra, que ajudava também na criação dos netos.
Os filhos, Nagib e Salim, que, casados, moravam em outras residências, quando iam visitar os pais levando os netos, invariavelmente recebiam uma ordem de Zekié: “pegue aquela caixa”.
Na caixa, tesouros guardados a espera dos netos:
“Eram doces, açucarados, uma maravilha para nós, crianças. Quando nossos pais, preocupados com a quantidade de doces que comíamos, reclamavam ela dizia ‘come, é água’, querendo dizer que, como água, não nos faria mal”, relembra Mario Roberto Rizkallah, atual diretor da Casa da Boia, filho de Salim, neto de Zekié e Rizkallah Jorge.
“Me chamo Mario por influência dela, que era católica e muito religiosa. Mario remeteria à Maria, mãe de Jesus”.
Não há registros de que Zekié Naccache tenha exercido qualquer função na Casa da Boia, mas sua dedicação à família, ao cuidado e educação dos filhos, além das atividades de benemerência a que o casal Zekié e Rizkallah se dedicaram ao longo da vida, foram fatores que deram a sustentação à família para a prosperidade dos negócios
Passados mais de um século da fundação da Casa da Boia e da participação desta mulher pioneira em um tempo em que à mulher era relegado uma atividade meramente figurativa, felizmente a realidade é outra.
Pelos nossos quase 125 anos de atividades, a Casa da Boia já contou com valorosas funcionárias em diversas áreas da empresa. Hoje, praticamente um terço dos nossos colaboradores são mulheres, algumas em cargos de liderança, o que não representa nenhum favor.
Ao contrário, significa que nossa sociedade é outra, muito diferente dos tempos pioneiros de Zekié Naccache, em que as mulheres, por suas competências, ocupam os espaços que quiserem, ainda que quase sempre se dividindo entre suas competências profissionais e os cuidados com a família.
Zekié Naccache representa, de forma simbólica, um legado histórico e cultural da Casa da Boia e no bimestre em que o tema “Cores, Flores e Sabores” compõem o universo de nossa ações, nada mais do que adequado prestar esta pequena homenagem à mulher pioneira de nossa empresa.