Na residência de Marieta Teixeira de Carvalho
resiste a memória da escravidão em pleno centro de SP
O Brasil celebra, oficialmente, desde 2011 (LEI Nº 12.519, DE 10 DE NOVEMBRO DE 2011) o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Celebrar talvez não seja a palavra ideal para se referir à data que remete à morte do líder do Quilombo dos Palmares, em 20 de novembro de 1695, mas nos ajuda, enquanto sociedade, a visualizar as lutas, conhecer a memória, entender as questões de mais de 50% da população brasileira negra, ou preta.
Voltando a Zumbi, o Quilombo dos Palmares foi o maior quilombo que existiu na América Latina. Estruturado na região do atual estado de Alagoas, chegou a reunir cerca de 20 mil habitantes, uma cidade de pequeno porte. Foi formado por escravos fugidos do cativeiro de engenhos da região de Pernambuco e que escolheram a região da Serra da Barriga, na zona da mata de Alagoas, para montar o seu centro de resistência.
Foi um dos grandes símbolos da resistência dos escravos no Brasil, tendo sido alvo de expedições organizadas por portugueses e holandeses com a intenção de destruí-lo, o que aconteceu efetivamente em 1694.
Zumbi liderou o Quilombo dos Palmares durante os últimos anos de existência do local que resistiu por cerca de um século à dominação dos europeus colonizadores. O quilombo era de início um refúgio para escravos, mas depois acolheu também índios e brancos pobres.
Após a destruição de Palmares em 1694 pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, Zumbi passou a viver nas matas da região até que foi morto em 20 de novembro de 1695.
A memória da escravidão em plena rua Florêncio de Abreu
Inúmeros pontos históricos remetem à presença e fatos relacionados às pessoas pretas no centro de São Paulo. A praça da Liberdade, a Igreja dos Aflitos, a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, a Ladeira da Memória, o próprio bairro do Bixiga.
Há um sítio histórico que se referencia ao triste momento da escravidão, que, ao contrário de outros, ainda remanesce, em pleno centro da capital paulista e literalmente, ao lado da Casa da Boia.
Contrastando com nosso sobrado restaurado, separado apenas pela entrada de um estacionamento, está o sobrado de número 111 da rua Florêncio de Abreu, a antiga residência do Senador Carlos Teixeira de Carvalho, construído em 1878.
Carlos Teixeira de Carvalho, comerciante próspero pertencente à elite da sociedade de São Paulo na segunda metade do século XIX, foi Senador do Congresso Legislativo por duas legislaturas, pelo Partido Republicano Paulista, em 1891 e de 1892 a 1894. Com sua morte, a herdeira do palacete foi sua filha, Marieta Teixeira de Carvalho.
A herdeira do casarão acabou vendendo o imóvel para o Mosteiro de São Bento no final da década de 1960, mas, pelo acordo de venda, ela permaneceria nele até falecer. Assim foi feito e ela ocupou o edifício até 1975, quando morreu, aos 92 anos de idade.
Até esta data o imóvel se manteve intacto, preservado, mas, após a morte de Marieta Teixeira de Carvalho, o imóvel e o patrimônio em seu interior acabaram sendo motivo de disputas entre o poder público, o Mosteiro de São Bento e os herdeiros da família.
O processo de tombamento por parte do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico iniciou-se em 1975 e o Condephaat defendia que o mobiliário da residência tinha valor cultural e deveria ser tombado juntamente à construção. Seus herdeiros alegaram que a inclusão dos móveis não tinha valor legal no processo e passaram a leiloar os bens do sobrado. O Estado até conseguiu suspender uma vez o leilão, mas os herdeiros recorreram e ganharam o processo, o que esvaziou o sobrado de seus móveis e objetos da época do Brasil imperial.
Em 11 de novembro de 1980, foi publicado no Diário Oficial o tombamento do imóvel: “Fica tombado por seu vasto valor artístico e histórico, como documento excepcional de um tipo de habitação paulistana do final do século XIX, representando partido arquitetônico associado às transformações acarretadas pela economia do café, o prédio da rua Florêncio de Abreu, 111, nesta capital, de propriedade do Mosteiro de São Bento”.
O tombamento pelo Condephaat tem número de processo 00535/75 e resolução 43 de 03/11/1980.
Antiga senzala nos porões da casa que deveria ter sido restaurada
Entre 2005 e 2008 o casarão foi beneficiado por uma verba da Petrobras através da Lei Rouanet, de incentivo à cultura, para que fosse restaurado e fosse transformado em um centro cultural, como noticiou a Folha de São Paulo, em 26 de janeiro de 2008. Relatava a matéria de Marina Ganzzoni e Taniele Ruiz:
O projeto de restauro do arquiteto Affonso Risi Júnior prevê um espaço para concertos, recitais e exposições.
O trabalho começou com a pesquisa da artista plástica especializada em restauração Nilva Calixto. “A restauração é como a arqueologia, mas na vertical. Você “escava” a parede para descobrir todas as decorações pelas quais o edifício passou”, compara.
A pesquisa revelou pinturas em formato de medalhões com estilo da época da colônia sob cinco camadas de tinta. “Encontrei uma obra mais antiga e valiosa sob a pintura de desenho repetitivo pela qual a casa foi tombada”, comemora a restauradora.
A senzala no porão foi reformada para receber exposições. Originalmente com menos de um metro e meio de altura, precisou ter o solo escavado para melhorar a circulação das pessoas.
O segundo piso ainda não foi restaurado, mas suas paredes de taipa francesa já atraem estudantes de arquitetura interessados em conhecer a técnica. “É a única casa em taipa francesa que restou em São Paulo”, explica a restauradora.
Encarregada da execução da obra, a arquiteta Olívia Hiss buscou referências em fotografias antigas para reconstituir as partes faltantes na decoração. Para ela, um dos diferenciais para garantir a qualidade da restauração é a contratação de mão-de-obra qualificada.” (Folha de São Paulo, 26/01/2008)
O dinheiro captado pela lei de incentivo acabou não sendo suficiente para a continuidade da restauração. O projeto foi interrompido e o fato concreto é que o sobrado, hoje, encontra-se em péssimo estado de conservação.
A memória da senzala que fora usada nos anos finais da escravidão do Brasil, possivelmente a única remanscente no centro de São Paulo, resiste abandonada bem ao lado da Casa da Boia.