O legado de Rizkallah Jorge
pela cidade de São Paulo
No último dia 25 de janeiro a cidade de São Paulo completou seus 469 anos de fundação. De uma vila indígena de importância menor no período colonial à maior e mais complexa cidade do Brasil, a capital paulista passou por inúmeras transformações nestes mais de quatro séculos e bons anos.
A São Paulo dos Campos de Piratininga, habitat natural dos índios guaianás, foi fundada em 15 de janeiro de 1554, por um grupo de padres católicos Jesuítas, dentre eles, dois ficaram muito conhecidos, Manuel da Nóbrega e José de Anchieta.
O topo da colina escarpada escolhido pelos padres para fundar um colégio, a partir do qual seria iniciada a povoação do território ocupado, localizava-se estrategicamente na confluência de dois importantes rios: o Tamanduateí e o Anhangabaú. Não por acaso, aliás, por séculos, os limites da área habitada da Vila de Piratininga e depois da Cidade de São Paulo, foi delimitada por seus rios.
Além dos dois já citados, nos extremos da região, havia o Tietê e o Pinheiros, a limitar o território.
Outras cidades do Brasil Colonial tiveram expansão e importância política maiores do que a Vila de Piratininga.
Rio de Janeiro, por exemplo, a capital do Império, Salvador e Recife, beneficiadas pelo ciclo do açúcar, eram mais desenvolvidas que São Paulo, que até meados do Séc. XVII era uma vila isolada e de pouca relevância no contexto nacional.
Vai um café com progresso?
As coisas começam a progredir na cidade a partir dos ciclo do café do Vale do Paraíba, e um pouco mais adiante, do interior paulista, cujos produtores precisavam escoar a produção para o porto de Santos e São Paulo era um caminho natural desta movimentação.
De 1869 em diante São Paulo passa a beneficiar-se de uma ferrovia que liga o interior da província de São Paulo ao porto de Santos, a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí. Um pouco antes, em 1827, houve a criação de cursos jurídicos no Convento de São Francisco e já em 1901, a Estação ferroviária da Luz era ampliada e ganhava a edificação atual, expandindo as atividades econômicas da cidade que, agora sim, começava a “entrar nos trilhos” do progresso.
Os ciclos do café do Séc. XVIII e XIX, associados à abolição da escravatura exigiam cada vez mais mão de obra para o trabalho nas lavouras, mão de obra essa, em grande parte, vinda da Europa.
Neste contexto, chegam os italianos, portugueses, espanhóis e os árabes, dentre eles um cidadão sírio chamado Rizkallah Jorge Tahan.
Como já contamos em outras postagens, Rizkallah Jorge chega a São Paulo em 1895. Em 1898 funda a Rizkallah Jorge e Cia, que viria a ser a Casa da Boia. Mas, o foco de nosso post é o legado que nosso fundador deixa para a cidade, à medida que seus negócios prosperam e ele enriquece.
Nossa empresa, Patrimônio Cultural e Imaterial da cidade
O mais conhecido legado de Rizkallah Jorge se materializa no sobrado que resiste firme, forte e belo na rua Florêncio de Abreu, 123, a sede da Casa da Boia. Mas, convenhamos, talvez nem o próprio Rizkallah, nem seus filhos imaginassem que o sobrado requintado, como outros da rua, pudesse remanescer como uma das jóias da arquitetura preservada em São Paulo.
Isso porque, construído para ser a moradia da família em seu andar superior e a sede da fábrica e da loja no térreo, naquele momento histórico do início do Séc. XX não era mais do que um belo imóvel, assim como outros na rua e no centro.
A “sorte” do imóvel foi ter permanecido nas mãos da família e também ter sempre servido como sede da empresa, como é até hoje.
Quando o neto do fundador, Mario Rizkallah, passa a integrar o negócio, na década de 1970, junto com seus tios e primos, o gosto pela tradição da empresa e a admiração pela beleza do sobrado foram falando alto, tanto que ao ir adquirindo a participação dos familiares e se tornar o único dono da Casa da Boia, Mario Rizkallah empreende uma restauração da fachada e das salas do andar superior que devolvem ao imóvel suas características originais.
Os esforços de Mario e Adriana Rizkallah na preservação material do imóvel e no legado imaterial, a memória do negócio, da família, das tradições do ofício, do bom atendimento no comércio levam a Casa da Boia a ser uma das escolhidas para receber o selo “Patrimônio Cultural e Imaterial de São Paulo”, outorgado pela prefeitura paulistana em 2016.
Um pouco de Rizkallah Jorge pelos cantos de São Paulo
Mas, para além da sede da Casa da Boia, esticando o olhar por vários cantos da cidade, a presença de Rizkallah Jorge, pode ser descoberta à luz de um pouco de história.
Em nosso último post “A história da fundação da Igreja Armênia na Capital Paulista”, comentamos como a atuação de Rizkallah Jorge foi fundamental para que a comunidade armênia da capital conseguisse um local para professar a sua fé. A Catedral Armênia São Jorge, na Avenida Santos Dumont, é um destes legados do imigrante sírio à capital.
Mesmo quando atuava em seu próprio interesse empresarial, Rizkallah acabou por deixar à São Paulo edifícios de arquitetura ímpar. Falamos dos edifícios que nasceram para uso misto (moradia em seus andares superiores e comércio nos inferiores) que ainda podem ser vistos em ótimo estado de preservação na rua Carlos de Souza Nazaré, aqui próximo à rua 25 de março: os palacetes Paraíso, Alepo e São Jorge, construídos entre 1920 e 1930.
Esporte Clube Sírio
Fundado em 14 de julho de 1917, o Esporte Clube Sírio começou com uma festa. Jovens imigrantes sírios e libaneses comemoravam, neste dia, o aniversário de Milhem Simão Racy, num quarto de pensão na rua Augusta, e lhe deram de presente a primeira presidência do então batizado “Sport Club Syrio”.
O clube teve sua primeira sede em uma sala na Rua do Comércio, centro de São Paulo, no início de 1920, a sede social foi transferida para um conjunto na rua Florêncio de Abreu. Depois, o clube passaria por um terreno na Ponte Pequena e finalmente construiria a sede que ocupa hoje nas proximidades do Ibirapuera.
Assim como fizeram outros abnegados associados, em um momento de construção na nova sede Rizkallah Jorge doou vultosa quantia em dinheiro e viabilizou a construção da sede social, cujo salão principal, aliás, tem o seu nome.
Vários descendentes da família Rizkallah exerceram voluntariamente cargos na direção do clube, nos mais de cem anos de sua existência.
Hospital Sírio-Libanês
Outro legado que contou com a ajuda de nosso fundador.
Em 1921 um grupo de amigas da colônia sírio-libanesa tinha nas mãos algumas dezenas de contos de réis e um grande sonho: construir um hospital à altura de São Paulo, como forma de retribuir o acolhimento encontrado na cidade.
Naquele encontro, elas fundaram a Sociedade Beneficente de Senhoras e saíram em busca de apoios para concretizar o sonho de construção do Sírio-Libanês.
Recrutaram voluntárias, organizaram eventos beneficentes e visitaram escritórios de empresários para conseguir donativos.
Um dos empresários entusiasmados com a iniciativa era Rizkallah Jorge, que encampou a ideia e fez a doação do montante para a construção de uma ala inteira do novo hospital.
Monumento Amizade Sírio-Libanesa
Quando o Brasil completou 100 anos de independência, em 1922, a comunidade sírio-libanesa paulistana achou por bem prestar uma homenagem ao país que recebera os seus cidadãos e decidiram doar uma escultura à municipalidade.
Para viabilizar a obra, foi criada uma comissão, presidida por Basílio Jafet: a Comissão para a Homenagem sírio-libanesa ao Centenário da Independência.
Foi contratado o escultor Ettore Ximenes para elaborar a obra, que seria feita em mármore e bronze.
O financiamento do trabalho se deu a partir de assinaturas anuais correspondentes a 120 e 2.400 selos entregues junto de um talão assinado pelo tesoureiro da comissão.
Inúmeros cidadãos sírios e libaneses contribuíram para o financiamento da obra. A família Jafet, assim como Rizkallah Jorge e seu filho, Jorge Rizkallah foram os que assinaram a cota máxima da subscrição, contribuindo decisivamente para que a obra fosse executada.
O monumento foi inaugurado publicamente em 1928 em frente ao Palácio das Indústrias, no Parque Dom Pedro, sua cerimônia incluiu uma parada com mais de dois mil soldados, o discurso do prefeito, de vereadores e uma banda tocando os Hinos do Brasil, da Síria e do Líbano.
O monumento é composto por uma torre de bronze e granito de dezesseis metros de altura,
dividido em quatro seções que visavam demonstrar as contribuições sírias à cultura mundial.
Na interpretação de Jeffrey Lesser as cenas retratadas constroem a narrativa de como a grandeza síria transformou o mundo permitindo que o Brasil fosse descoberto e prosperasse, visto que na parte inferior do monumento estão retratados os fenícios como pioneiros da navegação, a descoberta das Ilhas Canárias por Haitam I, o ensino do alfabeto e a entrada dos sírios no Brasil, representando o setor que os deu prosperidade (LESSER, 2001. p. 106).
O topo do monumento é composto de três figuras em tamanho natural: duas femininas, representando a República Brasileira, uma moça síria e um homem traduzindo um guerreiro indígena.
O monumento foi realocado em 1988 para a praça Ragueb Chohfi, próximo à rua 25 de Março e, infelizmente, como boa parte dos monumentos da capital, sofre com o abandono por parte da prefeitura, estando em péssimo estado de conservação.
Caminhar por São Paulo é descobrir a cada passo uma história de cidadãos anônimos, outros nem tanto, cujas atitudes contribuíram para a construção da maior cidade do Brasil.
Nós, da Casa da Boia, temos orgulho das atitudes dos nossos antepassados e tentamos dar continuidade ao legado histórico, artístico e cultural de nossos antecessores, contribuindo para a memória da nossa São Paulo.