São Paulo do futebol
e a relação com sírios e a Casa da Boia
Nenhum outro esporte no Brasil atrai tanto a atenção das pessoas quanto o futebol, que tem o seu “dia nacional” em 19 de julho. O jogo em que 11 participantes tem o objetivo de colocar uma bola dentro do gol do time dos seus 11 adversários conquistou o país desde que o paulistano Charles Miller, voltou da Inglaterra com uma bola, uniformes e um livro de regras, lá no final do século XIX. Descubra agora a forte ligação de São Paulo, do café, da ferrovia, da comunidade síria e da Casa da Boia com o futebol.
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Vai começar nossa partida!
São Paulo. Segunda metade do século XIX. A popularização do consumo do café no mercado mundial alavanca cada vez mais as plantações do interior do estado e cuja produção era escoada para o Porto de Santos, literalmente, no lombo de burros, que desciam a serra do mar, uma forma ineficiente e demorada de transportar o precioso grão das fazendas até o embarque para a exportação.
Nesse contexto nasce a São Paulo Railway Company, empresa criada para construir uma ferrovia que ligasse o Porto de Santos ao interior paulista.
Para trabalhar na empreitada, cuja construção começou em 1860, inúmeros técnicos, engenheiros e trabalhadores com experiência em ferrovias vieram para São Paulo de vários locais da Europa, como Alemanha, Suíça e principalmente do Reino Unido, dentre eles o escocês John d’Silva Miller.
Miller teve um filho, nascido em São Paulo, Charles William Miller, que atingindo idade suficiente para estudar no estrangeiro, foi mandado para a Inglaterra com dez anos para estudar na Bannister Court School. Lá dentre outros esportes praticados, conheceu o recém criado “foot ball”. Tomou gosto pelo jogo e, ao voltar ao Brasil, trouxe na bagagem duas bolas usadas, um par de chuteiras, uma bomba de encher bolas e uniformes usados. com os quais praticava o esporte na Inglaterra, além do livro de regras deste jogo que ninguém em terras paulistanas conhecia muito bem.
É preciso dizer que Charles Miller voltara para o Brasil em 1894 para trabalhar na mesma São Paulo Railway Company e, ali, apresentou o esporte que aprendera na Europa para seus companheiros.
No dia 14 de abril de 1895, na Várzea do Carmo, aqui bem perto da Casa da Boia, em São Paulo, foi realizada aquela que teria sido a primeira partida de futebol do Brasil, disputada entre os funcionários da Companhia de Gás de São Paulo (São Paulo Gaz Company) e da Companhia Ferroviária de São Paulo (São Paulo Railway Company). O time de Charles Miller venceu a partida por quatro a dois.
Um esporte de elite…
Em seu início, o futebol era um esporte praticado por uma elite, principalmente de estrangeiros e seus descendentes, muitos dos quais vieram para o país para trabalhar nas duas citadas empresas que conquistaram as concessões de serviços públicos da ferrovia, a São Paulo Railway e do gás, a São Paulo Gas Company. A população da classe operária, à época, não era bem vista, nem jogando, nem frequentando, os espaços onde o futebol era praticado.
Tanto que o primeiro clube formado não apenas em razão do futebol, mas principalmente por ele, nasceu de uma reunião de ingleses em um bar na Rua São Bento.
Em 13 de Maio de 1888 vários britânicos, alguns engenheiros da São Paulo Railway conversavam sobre a ideia de fundar um clube social-esportivo, onde poderiam disputar seu jogo predileto, o críquete, bem como compartilhar horas de lazer com as famílias. Entre eles William Snape, William Speers, William Fox Rule, Peter Miller, Percy Lupton e Charles Walker. Desta forma nasceu o São Paulo Athletic Club, considerado o clube mais antigo da cidade de São Paulo e o primeiro a formar um time de futebol em São Paulo.
Conta-se que a sede do clube, que ainda existe, mas com o nome de Clube Atlético São Paulo, foi adquirida da famosa dama da sociedade paulistana Veridiana da Silva Prado. A sede social do clube fica em uma travessa da Avenida da Consolação, na rua Visconde de Ouro Preto.
Que se popularizou rapidamente
O futebol foi perdendo seu caráter elitista à medida que os operários e a classe trabalhadora, apartados dos clubes de elite, começaram eles mesmos a ocupar as várzeas (daí a denominação “time de várzea”) e a formar suas próprias agremiações.
Um dos mais amados times paulistanos nasceu justamente da força dos operários de uma grande indústria do início do Séc. XX, o Cotonifício Crespi.
O clube foi fundado como um time amador em 1924 por operários da Cotonifício Rodolfo Crespi, uma fábrica de tecidos de propriedade do Conde Rodolfo Enrico Crespi, a partir da fusão do Extra São Paulo FC e do Cavalheiro Crespi FC, dois clubes de várzea da Mooca.
Em homenagem ao empresário italiano, o novo clube foi batizado como Cotonifício Rodolfo Crespi Futebol Clube.
Em 19 de fevereiro de 1930, a diretoria do CR Crespi aprovou a mudança do nome do clube que, a partir de uma sugestão do próprio Conde Crespi, passaria a ser conhecido como Clube Atlético Juventus, em homenagem ao clube Juventus da cidade de Turim, Itália.
Fundado décadas antes, outro tradicional time paulista teve origem operária e sua história viria a se cruzar com a história da comunidade árabe em São Paulo.
Em 1 de setembro de 1910, um grupo de cinco operários formado por Joaquim Ambrósio, Antônio Pereira, Rafael Perrone, Anselmo Correa e Carlos Silva, todos do bairro paulistano Bom Retiro, se reuniram para formar um time de futebol.
A ideia surgiu depois de assistirem à atuação do Corinthian FC, equipe inglesa de futebol fundada em 1882, que excursionava pelo Brasil.
Os ingleses eram chamados pela imprensa da época de “Corinthian’s Team”, mas o time brasileiro só seria batizado “Sport Club Corinthians Paulista” depois de muita discussão e algumas reuniões.
O presidente escolhido por eles foi o alfaiate Miguel Battaglia, que já no primeiro momento afirmou: “O Corinthians vai ser o time do povo e o povo é quem vai fazer o time”. Da primeira arrecadação de recursos à compra da primeira bola de futebol do clube, pouco tempo se passou, na verdade, apenas uma semana.
Um terreno alugado na Rua José Paulino foi aplainado e virou campo, e foi lá que, já no dia 14 de setembro, o primeiro treino foi realizado diante de uma plateia entusiasmada que garantiu: “Este veio para ficar”.
O Corinthians e a comunidade síria paulistana
A história do Sport Club Corinthians se cruza com a história da imigração síria para São Paulo quando a agremiação decide mudar de sede e encontra um terreno no bairro do Tatuapé pertencente ao “Sport Club Syrio”, fundado em 1917.
O Syrio havia adquirido uma sede esportiva no bairro da Ponte Pequena e um terreno, uma “fazendinha”, na zona leste da cidade, que era usado como sede de campo do clube. Em 1926 o terreno foi vendido para o Corinthians, conforme consta no site oficial do clube paulistano:
“Na tarde de 18 de agosto de 1926, o então presidente do Corinthians, Ernesto Cassano, assinava, no 6º Tabelionato de Notas de São Paulo, a escritura de compra de 45 mil metros quadrados no Tatuapé, a primeira gleba do Parque São Jorge. O local se perpetuou como sede social do Corinthians, e passou a ser chamado de “Fazendinha”, por ser situado em local repleto de árvores e ao lado do Rio Tietê, ainda despoluído. No terreno, já havia um campo de futebol com arquibancadas, praça de esportes, campo de tênis, salão de dança e bar. A inauguração aconteceria dois anos depois, em 22 de julho de 1928, em partida contra o América-RJ, diante de dois mil torcedores, e que terminou empatada em 2 x 2.“
Esta história, aliás, a gente conta em detalhes nesta postagem de nosso blog, feita em abril de 2024.
Outra agremiação que surge das classes operárias é a Sociedade Esportiva Palmeiras, que não nasceu com este nome, mas como “Palestra Itália”, em agosto de 1914, fundado por dois operários das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, Luigi Cervo e Luigi Marzo e mais o jornalista Vincenzo Ragognetti e Ezequiel Simone, membro de várias entidades de cultura italiana da época.
Outros times nascem de comunidades de imigrantes e da elite da cidade
Esporte de apaixonados, o futebol serviu no início do século XX também como um catalisador do lazer de comunidades de imigrantes.
Assim surgiu a Associação Portuguesa de Desportos, conhecida popularmente como Portuguesa. No dia 14 de agosto de 1920, o jornal O Estado de São Paulo anunciava em sua página esportiva a fundação da agremiação:
“No salão nobre da Câmara Portuguesa de Commercio, à rua de São Bento, 29-B, deve realizar-se hoje às 20 e 1/2 horas a eleição e tomada de posse da diretoria da novel Associação Portuguesa de Esportes…”
A Portuguesa surgia da fusão de cinco sociedades lusitanas já existentes: Luzíadas Futebol Club, Associação 5 de Outubro, Esporte Club Lusitano, Associação Atlética Marquês de Pombal e Portugal Marinhense.
Por outro lado, um dos maiores clubes de futebol da cidade nasce justamente da desistência de atletas de outro clube.
A história começa com a fundação do Clube Athletico Paulistano, em 1900, quando jovens da elite econômica da cidade se reuniram na Rotisserie Sportsman, terceiro edifício dos famosos Palacetes Prates, na Rua São Bento, com o objetivo de criar um novo clube esportivo. A ideia era que a nova instituição pudesse ser frequentada por famílias brasileiras e também introduzir no país a cultura de valorização da educação física.
Nascia ali o Clube Athletico Paulistano, para a prática, dentre outros esportes, do ciclismo, a pelota basca e a ginástica. Mas a primeira modalidade que de fato ganhou destaque foi o futebol.
Acontece que o Paulistano se recusava a aderir ao iminente profissionalismo do futebol, e alguns dissidentes juntaram-se à Associação Atlética das Palmeiras, que possuía o melhor estádio da época, mas estava com muitas dívidas, para fundar um novo clube.
No dia 27 de janeiro de 1930, às 14 horas, foi assinada a ata de fundação do São Paulo Futebol Clube, no número 28 da Praça da República, nascido da união entre a Associação Atlética das Palmeiras e o Club Athlético Paulistano.
O futebol e a Casa da Boia
Duas coisas que aparentemente não tinham relação eram justamente a maior distribuidora de materiais não ferrosos da cidade e um time de futebol. Aparente…
Nos idos dos anos 1950 o Serviço Social do Comércio, o SESC, vendo a consolidação do futebol como um esporte de massa, passou a promover torneios de futebol entre as empresas do comércio paulista. E, adivinhe quem montou um time?
Segundo o jornal Correio Paulistano, no dia 4 de abril de 1951 foi formado o “Grêmio Esportivo Casa da Boia”, que passou a disputar torneios de futebol dos comerciários.
A edição do Correio Paulistano do dia 5 de abril de 1952 trazia uma matéria em que destacava justamente o primeiro ano de formação da equipe:
“Esteve em festas, ontem, o Gremio Esportivo Casa da Boia, assinalando a data do 1º aniversário do poderoso quadro. Formado para disputar os campeonatos do SESC, o G. E. Casa da Boia já pode ser considerado tecnicamente como um poderoso esquadrão e socialmente como uma grande agremiação.
Tendo à frente os esportistas-comerciantes srs. Nagib e Salim Rizkallah Jorge, auxiliados eficientemente pelo abnegado Argemiro Bernardo e outros, o G. E. Casa da Boia marcha gloriosamente no cenário esportivo comerciário.”
Quase quatro décadas depois, nos anos 80/90, a Casa da Boia também formou um time de futebol, desta vez, futebol de salão, para disputar os campeonatos promovidos pela Associação dos Lojistas da Florêncio de Abreu, Alfa, cujos jogos eram disputados em quadras no centro de São Paulo, principalmente no SESC Consolação.
Nosso consultor em vendas José Bispo, foi um dos atletas que integrou aquela equipe e, em entrevista concedida à memória da Casa da Boia não poupou modéstia para dizer que foram tempos de glória:
“Rapaz, você não tem ideia do que era aquilo. Toda a rua ia assistir aos jogos e não tinha time fácil não. Mas, modéstia à parte, o nosso time da Casa da Boia era muito bom. Não foram poucas as vezes que a gente foi campeão não” recorda Bispo.