A saga do Edifício Rizkallah Jorge
A saga do Edifício
Rizkallah Jorge
No centro da capital paulista fica o edifício que leva o nome do fundador da Casa da Boia. Projetado para ser um hotel, foi sede de um grande grupo empresarial. Degradou-se, foi recuperado e atualmente é um prédio residencial na Santa Ifigênia.
Rua Riskallah Jorge (sim, Riskallah com “s” ao invés do correto “z”), número 50. Quem pára defronte à portaria suntuosa do edifício residencial quase ao lado do viaduto Santa Ifigênia possivelmente nem imagina a rica história da edificação que leva o nome de nosso fundador. Rizkallah Jorge Tahan.
Vamos começar pela história da rua
O imigrante sírio Rizkallah Jorge Tahan, como a gente já contou inúmeras vezes, fundador da Casa da Boia, teve uma trajetória de sucesso empresarial no Brasil, desde que aqui chegou, em 1895. Com a dedicação ao trabalho e a visão empreendedora, acumulou fortuna e prestígio na sociedade paulistana, até falecer, em 1949.
Logo após seu falecimento, começam as iniciativas para denominar uma rua da capital com o seu nome. Por meio da Lei nº 4.058, de 8 de junho de 1951, ficou o executivo autorizado a dar a denominação de Rizkallah Jorge a uma das vias públicas da Capital.
No ano seguinte, por meio da Lei nº 4.186, de 14 de janeiro de 1952, o ato foi concretizado. Entretanto, nesta última Lei, ao invés de Rizkallah (com “z”), o nome foi grafado com “s”, ou seja, Riskallah.
Assim foi que a pequena rua de cerca de 120 metros que sai da Avenida Prestes Maia e termina na confluência de várias outras no coração da Santa Ifigênia, ganhou o nome, ainda que errado, de nosso fundador.
Nela, nos anos 1940, a Companhia Antarctica Paulista, que já era uma potência na fabricação de cerveja e refrigerante, resolveu erguer um hotel de luxo. Seria o Hotel Pinguim, uma alusão ao bichinho simpático que decorava os rótulos de seus produtos.
O prédio, em estilo neoclássico, foi finalizado, com sua fachada ricamente adornada materiais e acabamentos de primeira qualidade, como pedras, mármores, granito, portas de ferro e bronze. A construção perfaz um total de 7.472,90 m² compreendendo-se o subsolo, o térreo e 17 pavimentos. Para o acesso aos pavimentos havia três elevadores e duas escadas.
Curiosamente, entretanto, o hotel projetado para ali funcionar nunca foi inaugurado.
O edifício foi ocupado pelo Grupo Votorantim, que ocupou a edificação por cerca de 20 anos, até se mudar dali na década de 1960.
Começava a degradação do prédio
Com a saída do Grupo Votorantim, o edifício foi vendido para Real e Benemérita Sociedade Portuguesa de Beneficência, mais conhecida como “Beneficência Portuguesa”.
Corriam os anos 70 do Século XX. O centro de São Paulo perdia seu status de pólo econômico para outras regiões da cidade, como a Avenida Paulista e a região da Avenida Faria Lima, que se tornaram os centros econômicos da capital nas décadas seguintes.
Com o êxodo das empresas do centro, todo o eixo cultural, gastronômico e comercial se deslocava, também para as novas regiões e o edifício, sem interesse ou potencial de ocupação era relegado ao segundo plano pela Beneficência e estava abandonado, desocupado.
Em 1992 outro fato relevante para a cidade de São Paulo corroborou para complicar a situação do edifício. Ele fora incluído como um dos imóveis que foram tombados com grau 3 juntamente com a área do Vale do Anhangabaú Resolução Conpresp nº 37/92.
Segundo o Artigo 2° da Resolução CONPRESP 37/92 o Nível de Proteção 3 (NP-3): “corresponde a bens de interesse histórico, arquitetônico, paisagístico ou ambiental, determinando a preservação de suas características externas”.
Com o tombamento, mesmo que apenas da fachada, e o desinteresse da Beneficência Portuguesa no imóvel a manutenção do edifício, que já estava abandonado, ficou ainda mais comprometida.
Invasão e recuperação
Assim, o imóvel acabou sendo um marco na luta por moradia no centro da capital, a medida que foi ocupado por integrantes do Movimento de Moradia do Centro (MMC), uma articulação da famílias de baixa renda que lutam pelo destinação de edifícios abandonados no centro da capital como moradia popular.
O Movimento de Moradia do Centro não tinha condições de manter o edifício em funcionamento adequado.
As condições da edificação se tornaram precárias do ponto de vista habitacional.
Situações como: desorganização dos usos dos espaços, inexistência de controle de acesso ao edifício, precariedade elétrica e hidro sanitárias, escassez e falta de controle de uso de energia e água, sistemas vitais de utilização do edifício sem funcionamento, assim como os riscos iminentes à segurança contra incêndio, eram uma realidade vivida diariamente pelos ocupantes.
Isso começou a mudar no início da dos anos 2000.
O Ministério das Cidades e a Caixa Econômica Federal, tendo como financiador o Fundo de Arrendamento Residencial – FAR, promoveram a reabilitação do edifício entre 2001 a 2003.
O projeto do escritório de restauro Helena Saia, fez com que os 17 andares do edifício comercial, dessem lugar a 167 unidades residenciais familiares de metragem que variam de 24,4m² a 45m², sendo todas as opções com no máximo 1 dormitório.
Com o projeto de reabilitação, as lajes foram divididas em unidades familiares regulares, com escritura. Foi implementado um sistema de segurança que instalava a portaria 24 horas, os projetos de hidráulica e elétrica foram readequados e condizentes com a nova realidade do edifício, a energia foi individualizada e a água, com taxa reduzida, foi religada pela Sabesp.
Com área privativa entre 30m² e 45m², as atuais unidades são compostas por sala/dormitório, cozinha americana com área de serviço integrada e banheiro.
O projeto de interiores manteve elementos originais: foram recuperados pisos de taco, soleiras e peitoris em mármore. A fachada teve as janelas, portas de ferro e ferragens antigas em bom estado preservadas e restauradas, recuperando-se também a sua cor original.
No saguão, o piso, as colunas e as paredes em mármore de Carrara foram restaurados, devolvendo brilho à entrada do edifício.
O desafio à época de sua reforma era criar, ao mesmo tempo, apartamentos a baixíssimo custo: R$ 24.700,00, a serem arrendados, por R$ 174,00 mensais, para famílias com renda de até quatro salários mínimos e, ao mesmo tempo, restabelecer o antigo esplendor do prédio com sua fachada tombada pelo patrimônio histórico.
Assim foi que, no ano de 2003, equalizadas todas estas questões, o edifício que leva o nome de nosso fundador foi finalmente entregue, com todas suas unidades comercializadas.
Nem tudo foi fácil naquele princípio de nova ocupação, isso porque as unidades foram destinadas a famílias que anteriormente, muitas vezes vinham de habitação irregular, nas quais acabavam não tendo acesso a serviços como luz, água e esgoto regulares.
Assim, quando assumiram seus imóveis se viram “obrigadas” a pagar por estes serviços e muitas não conseguiam arcar com as despesas da prestação, da taxa condominial e dos serviços públicos.
Passados mais de 20 anos desta nova fase do Edifício Rizkallah Jorge, entretanto, hoje a edificação se tornou uma referência de projeto integrado entre poder público e iniciativa privada na solução de questões relacionadas à habitação popular no centro de São Paulo.
Coincidentemente, o nome do responsável por ajudar o saneamento básico da cidade de São Paulo, na virada do Séc. XIX para o XX, se tornaria, na virada do Séc. XXI, referência do pioneirismo na iniciativa de resolução da questão de moradia na mesma metrópole.