São Paulo em guerrra. 100 anos do levante de 1924
São Paulo em guerra
100 anos do levante de 1924
Na última terça-feira os paulistas comemoraram o feriado de 9 de julho, em que lembraram a Revolução Constitucionalista de 1932, possivelmente o mais famoso evento bélico em que o estado se envolveu no Séc. XX, mas o mês de julho marca também os 100 anos de um outro levante, que deixou marcas profundas na cidade, a esquecida Revolta Paulista de 1924.
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2024. Caminhar pelas ruas do centro de São Paulo oferece poucos riscos (fora os dos pequenos roubos que acontecem em todas as metrópoles).
Mas, há exatos 100 anos, em julho de 1924, circular pela cidade de São Paulo significava transitar por uma área em guerra. Literalmente.
As gerações mais novas provavelmente ignoram o fato de que naqueles dias, a cidade vivia uma guerra, com todas as características de um conflito desta natureza.
Edifícios marcados por tiros, destruídos por granadas, atingidos por artilharia aérea, trincheiras e barricadas nas ruas, centenas de mortos e um risco enorme para a população é um cenário difícil de imaginar no centro da maior cidade do Brasil, mas real, muito real, naqueles conturbados dias de julho de 1924.
O movimento tenentista
Para falar do levante de 1924 é preciso recuar até 1922 e revisitar o surgimento do chamado movimento tenentista, uma ação político-militar que surgiu no início do século XX no Brasil e teve suas raízes no contexto da Primeira República.
O movimento teve início com jovens oficiais militares (os tenentes) insatisfeitos com a falta de democracia e a corrupção na política. Seus objetivos incluíam a busca por reformas políticas, participação popular e modernização econômica, e a luta contra a corrupção.
A chamada Revolta dos 18 do Forte de Copacabana ocorreu em 2 de julho de 1922, na cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil e foi a primeira revolta do movimento tenentista, quando militares do Exército do Forte de Copacabana, amotinados, queriam a derrubada do governo federal. O movimento foi sendo esvaziado à medida que as forças leais ao presidente Artur Bernardes começaram a sufocar os revoltosos. Ao final do levante, apenas 17 militares e um civil (os 18) ainda resistiam às forças federais no Forte de Copacabana, quando este foi retomado.
Apesar de fracassado, o episódio dos “18 do Forte” ficou no imaginário dos jovens oficiais e o movimento tenentista ganhou força.
O movimento toma força em São Paulo
Lembrando que o movimento tenentista crescia no interior do Exército, e, que, naquele momento histórico, o Rio de Janeiro era a capital do país concentrando o maior contingente da Força (a maioria fiel ao governo) a tentativa de um novo levante na capital federal era algo descartado pelos revoltosos.
São Paulo, ao contrário, era uma cidade em franco crescimento, já se tornava o centro financeiro do Brasil, tinha um contingente do exército, digamos, menos “vigiado” do que no Rio, além de ser servida por ferrovias e estar próxima da Capital Federal.
O movimento ganhava força por meio da atuação dos militares em convencer seus pares, convencer civis e integrantes de outras forças, como a “Força Pública (organização predecessora da Polícia Militar) paulista. Revoltosos ser organizavam, faziam reuniões, traçavam planos e escondiam armamentos desviados dos quartéis em várias casas pela cidade.
Por medida de segurança, só os líderes sabiam a data do levante. Para manter o segredo, o início ocorreria em poucos quartéis: o 4.º Batalhão de Caçadores, no bairro de Santana, o Regimento de Cavalaria da Força Pública, na Luz, e nas unidades do Exército em Quitaúna.
O principal obstáculo do plano era o complexo de quartéis da Força Pública na Luz e estes tiveram prioridade na ação.
5 de julho de 1924 – Começa o levante
Nesta madrugada os quartéis de Santa e da Luz foram tomados pelos revoltosos e neste último, o da Luz, foi instalado o centro de comando da operação do levante. Ainda naquela madrugada, foram tomadas as estações de trem Sorocabana (Júlio Prestes) e a Estação da Luz, assumindo assim os revoltosos o controle do tráfego ferroviário.
No próximo alvo, o Palácio dos Campos Elíseos (sede do governo estadual) os revoltosos encontraram o primeiro foco de resistência dos soldados da Guarda Cívic a Corpo de Bombeiros. Nas esquinas das alamedas Glete e Nothmann, os invasores, com duas metralhadoras, abriram fogo contra o Palácio, tendo sido revidados pela Guarda. Iniciava-se assim, os combates pelas ruas da cidade.
Já no primeiro dia do conflito, as tropas revoltosas e as das forças públicas somavam cada qual mais de 1.000 homens e os dias seguintes seriam de intensos confrontos pelo centro da cidade.
O Governo Federal solicitou reforços das forças leais e tropas federais, do Exército e da Marinha começavam a avançar para São Paulo, intensificando os combates.
Houve luta ininterrupta de 5 a 8 de julho e os combates se concentravam nos bairros da Luz e dos Campos Elíseos, nas redondezas do vale do Anhangabaú e nos largos do Paissandu, Santa Ifigênia e São Bento.
Trincheiras eram improvisadas com paralelepípedos arrancados, e os topos de morros, prédios, torres da estação da Luz, e de igrejas eram disputados.
O coração do território revolucionário era o complexo de quartéis da Luz, a esta altura já cercado pelas tropas legalistas. Os rebeldes mantinham sob controle o Jardim da Luz, transformado em prisão para praças da Força Pública que não quiseram aderir ao movimento.
No centro, os legalistas tinham como reduto o Hotel Esplanada, próximo ao Teatro Municipal, e os rebeldes, o Regina Hotel, no viaduto Santa Ifigênia, e o Hotel Terminus, na esquina da avenida Washington Luís com a rua Brigadeiro Tobias.
Revolucionários na Praça Dom Pedro, às margens do Tamanduateí, combatiam os legalistas no alto da colina do Pátio do Colégio. Outros legalistas concentravam-se no quartel do Corpo de Bombeiros, na rua Anita Garibaldi.
Os bairros do Brás, Pari, Belenzinho e Mooca estavam ocupados pelos rebeldes desde a manhã de 7 de julho enquanto um contingente legalista ficou sitiado na Escola Normal do Brás. Os reforços vindos de Santos permitiram ao governo bombardear aos quartéis da Luz, na mesma manhã, e responder à artilharia dos revoltosos.
Os legalistas reforçaram suas posições no centro. Do alto do Hotel Palace, seus atiradores assolaram as barricadas dos revoltosos. Os defensores tiveram que abandonar a rua Florêncio de Abreu, (caminho mais curto à sede do governo), mas logo houve intenso combate entre as tropas, os rebeldes contra-atacaram na rua, desalojaram os legalistas do hotel e desmontaram as defesas do Largo de São Bento.
Os revoltosos pareciam estar ganhando as batalhas à medida que as tropas legalistas iam abandonando seus postos.
As batalhas se intensificam pela cidade
O recuo das tropas legalistas nos primeiros dias do levante, ao contrário do que supunham os revoltosos, foi seguida, posteriormente, de um contra-ofensiva do governo, agora com reforço de tropas de outros estados.
As batalhas se intensificam pela cidade, inclusive com as tropas federais usando aviões para bombardear posições revoltosas e duram durante todo o mês de julho, se espalhando para bairros como a Mooca, Ipiranga e Cambuci.
Ao final de intensos entraves os revoltosos acabam por decidir abandonar suas posições na capital e estabelecer sua resistência no interior. E o fizeram de maneira “discreta”. No dia 27 de julho, após embarcarem tropas, armas e munições em trens na Estação da Luz, ao mesmo tempo em que mantinham alguns focos de resistência para distrair as tropas do governo, abandonaram por completo suas posições na capital, pondo fim aos mais intensos combates na área urbana paulistana.
Os revoltosos ainda ser organizam por semanas em focos de resistência pelo interior do estado, mas acabaram sendo continuamente derrotados pelas forças legalistas, fazendo como que o movimento acabasse fracassando.
Consequências pela capital
O relatório da prefeitura de São Paulo contabilizou 503 mortos e 4.846 feridos com o conflito, números estes, subestimados, segundo outras fontes.
Pelo registro da Santa Casa, teriam sido 723 civis mortos. A contagem da prefeitura não inclui as baixas fora da cidade e provavelmente omitiu grandes números de cadáveres sepultados fora dos cemitérios.
Conforme a prefeitura, 1 800 prédios foram danificados por granadas e balas. 103 estabelecimentos comerciais e industriais tiveram prejuízos pelos incêndios, saques, bombardeios, roubos e requisições dos revoltosos.
A principal medida do governo estadual para auxiliar a reconstrução foi a lei número 1972, de 26 de setembro, destinada a “socorrer as vítimas da recente rebelião militar, a auxiliar as instituições de caridade e a concorrer para a reconstrução de templos danificados”; 200 famílias, 33 hospitais e a Cruz Vermelha Brasileira foram indenizadas.
A Casa da Boia durante o conflito
A rua Florêncio de Abreu, sendo importante meio de ligação do centro da capital à região da Luz, epicentro dos acontecimentos, não ficou de fora desses conflitos e muitas edificações foram seriamente atingidas nas trocas de tiros, bombas e granadas.
Não há, entretanto, nos documentos até hoje recuperados e catalogados do acervo da Casa da Boia, referências de que nosso belo sobrado sede tenha sido danificado durante os conflitos, embora outros, no entorno, como o próprio Mosteiro de São Bento, e um conjunto de edificações próximas da ponte sobre a rua Carlos de Souza Nazaré tenham sido atingidos pelas bombas e tiros.
Fato é que, mais até do que a Revolução de 1932, o levante de 1924, que completa 100 anos, foi o maior conflito armado já vivido na capital Paulista. Algo tão inacreditável, que só mesmo a história para nos mostrar uma São Paulo transformada em praça de guerra.